É pena que para merecer a atenção do mundo considerado civilizado, o Haiti precisou ser literalmente arrasado por um terremoto gigantesco, seguido de vários outros tremores menores. Ainda não se tem o número exato das mais de cem mil vítimas fatais. Outras centenas de milhares estão desabrigadas e feridas, seja diretamente em conseqüência do tremor de terra, seja pela fome, agravada pelas conseqüências de outros terremotos menos visíveis na imprensa.

No tempo da colônia, o Haiti era uma próspera fazenda, na qual os franceses vinham trazer escravos negros e buscar cana de açúcar. Foi o primeiro país da América Latina que conseguiu se libertar de um governo europeu. Em 1804, Toussaint L´Ouverture liderou a revolução de escravos negros que levou o país à independência. Imediatamente, Thomas Jeferson, presidente dos Estados Unidos, declarou que a independência daquele país de negros era um mau exemplo e mandou invadir o país e massacrar o seu povo rebelde. Depois de mais quatro anos de guerra, o Haiti confirmou sua independência. Os Estados Unidos só o reconheceram como país livre, mais de 50 anos depois, quando os próprios norte-americanos tiveram de libertar seus próprios escravos. Mas, em 1915, ocuparam militarmente o Haiti e o governaram até 1934. Como escreve Eduardo Galeano: “retiraram-se quando conseguiram dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que proibia vender as plantations aos estrangeiros que não fossem dos Estados Unidos. Naquele tempo, Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria e tem “uma tendência inerente à vida selvagem, assim como uma incapacidade física de civilização”.

Os norte-americanos só desocuparam o Haiti quando conseguiram colocar um governo de haitianos, dominado por Washington e asseguraram que toda a população nativa fosse mantida em pobreza extrema. Começou assim a ditadura de François Duvalier (o Papa Doc) que dominou o país durante mais de 30 anos e depois o deixou ao seu filho. Quando em 1990, o povo do Haiti elegeu Jean-Bertrand Aristides como presidente da República, o presidente Bush (pai) tentou dominá-lo. Quando viu que não podia, o derrubou. Quatro anos depois, Aristides foi novamente eleito e o governo dos Estados Unidos conseguiu que fosse exilado à África do Sul, onde está até hoje. Washington impôs ao país um general que continuou a política de sempre. Até hoje, qualquer funcionário do governo dos EUA ou dos bancos norte-americanos manda mais no Haiti do que o presidente da República ou o congresso.

Nos anos mais recentes, o governo Bush convenceu a ONU de que o Haiti não pode ficar sem uma potência estrangeira que o domine. Conseguiu que “forças de paz da ONU” o ocupassem pacificamente. Se são “forças de paz” por que são soldados armados que ocupam o país e não médicos/as, educadores/as, assistentes sociais e assim por diante? O Brasil “coordena” estas tropas. Seu engajamento de ajuda ao país irmão é feito por solidariedade, mas também porque o nosso governo tem interesse em uma cadeira fixa no Conselho de Segurança da ONU e, para isso, precisa mostrar ações internacionais de ingerência humanitária.

Lavradores haitianos continuam atravessando a fronteira para trabalhar nas fazendas de cana de açúcar da vizinha República Dominicana. O governo ganha o salário de cada um e lhe paga em alimentos e roupas. Por outro lado, os norte-americanos ganham uma percentagem no comércio de matérias primas e em outros negócios. Para cada dólar dos dez milhões que o presidente Obama investe agora no Haiti, o seu governo já levou do país ao menos seis, em trabalho humano e matérias primas.

Este terremoto atual foi mais destruidor porque encontrou já um país semi-devastado por terremotos sociais permanentes e estruturais. O Haiti é um país ocupado. Nenhum exército estrangeiro se propôs a colaborar para organizar melhor os próprios haitianos e entregar tarefas de reestruturação do país ao seu próprio povo. Agora, é claro, não é o momento apropriado para fazer isso. A destruição das estruturas imobiliárias do país parece expressão da permanente demolição da dignidade humana de um povo sensível e de grande capacidade artística e de comunicação. Alguns dados revelam os “terremotos” sociais que, permanentemente, assolam o Haiti: Dos 8,1 milhões de habitantes, 80% vivem abaixo da linha de pobreza. Quase 75% das casas não têm água encanada ou esgoto. Menos de 40% da população tem acesso à água potável. Não existe coleta de lixo. 80% da população é desempregada. A renda per capita anual do Haiti representa 15% da média latino-americana. O analfabetismo atinge 45% da população. Em 2002, a expectativa de vida caiu de 52,6 anos para 49,1 anos. O País ocupa o posto 153° na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (PNUD 2004).

Há poucos dias, o reverendo Pat Robertson declarou na imprensa que o terremoto aconteceu porque, desde a sua independência, o povo do Haiti tem um pacto com o diabo. No Brasil, foi um diplomata do próprio Haiti que declarou que a desgraça aconteceu porque o povo haitiano pratica o Vodu.

Racismos, preconceitos e crueldades à parte, além dos urgentes envios de gêneros alimentícios e de remédios, o Haiti precisa de uma intervenção internacional de justiça e de paz que liberte o país das conseqüências terríveis do atual terremoto, mas também da desumanidade do racismo e do velho colonialismo imperialista imposto por países ditos democratas, como os Estados Unidos. Mais do que ajuda militar, o Haiti precisa respirar liberdade e ter o direito de viver dignamente e feliz.

Para quem vive uma busca espiritual, em qualquer que seja a tradição cultural ou religiosa, vale a palavra de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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