Ao retratar esse tema,parece até que nos transportamos para um assunto relacionado a um passado longínquo, medieval, mas que, ao contrário, está bem perto de nós.

Uma das contradições da modernidade é que ela pretende se preencher a si mesma apenas pela razão, com resultados tecnológicos positivos, precisos, com dados controláveis por uma ciência mensurável a olhos nus. E, de fato, o que vemos é uma explosão do sagrado, muitas vezes até sob forma radical.
O interessante é que não é difícil constatar essa incidência de milagres em diversos níveis , seja no popular ( e a Bahia está cheia deles: O Bonfim, Irmã Dulce, Bom Jesus da Lapa,), seja nas área mais tradicionais, como os milagres realizados nos santuários de Fátima, de Lourdes e também em Medjugore, na Ioguslávia, como em termos de manifestações “oficiosas”. Recentemente estive no Juazeiro do Norte e constatei a atualidade da mensagem do Pe. Cícero. A cidade estava cheia de romeiros. Na casa construída por ele em 1907, hoje é um Museu religioso que abriga mais de 1000 ex-votos.

Há os célebres e clássicos milagres do catolicismo medieval.Em Lanciano,na Itália,há o conhecido milagre do pão e vinho consagrados que se transformam em carne humana e em sangue , tudo comprovado cientificamente. Há também o célebre e tradicional milagre de S. Januário, em Nápoles, na Itália. Ele é um santo do século III e morreu mártir e sua festa é comemorada em 19 de janeiro. Um pouco do seu sangue se conserva numa ampola que é colocada em lugar de veneração no dia da festa e em outras datas . E qual é o milagre? Em cada ano, naquela data, o sangue, que é naturalmente seco, se liquefaz, para o regozijo espiritual dos fiéis.

Na verdade, a Igreja Católica usa de muita prudência para reconhecer a veracidade do milagre para ele poder ser proclamado de modo oficial; mas, independentemente do reconhecimento, os milagres existem, pululam e são reconhecidos pelo povo, sendo deles beneficiários – existem por toda parte, em todos os recantos, nas múltiplas expressões religiosas que nos cercam.Por isso, há santos “canonizados “ pelo povo.
Para os católicos o milagre “ é um fato sensível que o curso habitual da natureza não explica, mas que Deus produz num contexto religioso como sinal do sobrenatural “( F. Taymams, L´Encyclopedie de la Foi Catholique pour Tous).

Dentro desse contexto, podemos nos perguntar sobre o porquê da volta do sagrado nos nossos dias, em alguns casos até com uma extrema dose de fanatismo. Acredito , acompanhando alguns estudiosos do problema, que as atuais expressões do milagre, de presença tão palpável hoje, são um aspecto de um conjunto bem maior . É como se fosse a ponta de um imenso iceberg.

Os movimentos religiosos mais importantes , desenvolvem uma estratégia de ruptura com a ordem estabelecida que passa pela tomada de poder de modo revolucionário, enquanto que em outros países é a forma pietista que ele traz, para transformar o sistema sem violência.

Na ocasião da eleição do 1º ministro católico da Polônia, Lech Wallensa, parecia indicar que a volta do religioso sobre a cena política era uma lógica consequência da queda do comunismo. A Polônia parecia mesmo servir de modelo e fonte de inspiração para a “segunda evangelização da Europa” ,conforme a palavra de muitos representantes da Igreja Católica. Alguns querem ver nesses acontecimentos o fim do ciclo histórico da modernidade inaugurada pelas Luzes do século XVIII e caracterizada por uma emancipação de uma razão muito segura de si mesma em face da fé.

Entretanto, a crise de uma descristianização massiva que o Ocidente tem sofrido, esse espírito de secularização, pode, por outro lado, explicar o retorno da religião . O recurso à religião pode funcionar, com efeito, como uma resposta ao desencantamento engendrado pela crise das ideologias e pelo vazio espiritual de um mundo sob o signo da racionalidade técnica .

Não se deve fazer uma distinção apenas entre fé e não-crença mas será melhor partir de três termos : fé, crença e não-crença. Na verdade, nós assistimos ao surgimento de crenças “irracionais “ e o fenômeno Deus volta por toda parte onde não se espera, e sobretudo fora das igrejas oficiais.

O sagrado ( e de modo especial o milagre) reaparece atualmente sob formas até primitivas, arcaicas, “ selvagens” . Vê-se com facilidade que até intelectuais e cientistas se voltam para a astrologia e o esoterismo; Os nossos cultos afro-brasileiros não são frequentados apenas por descendentes de escravos, mas pelos filhos dos brancos mais ilustres que lá vão buscar alívio para os seus problemas, ao lado daqueles que procuram uma identificação maior com a cultura brasileira.
As ciências sociais e humanas , a própria Teologia, todos aqueles que lidam com esse aspecto da experiência humana , todos vêm que por trás dessa explosão religiosa e plural, escondem-se questões de extrema importância. Há uma velada crítica às igrejas históricas tradicionais, formais, que teriam perdido boa parte do seu caráter iniciático, isto é, do seu “mistério”, permanecendo quase que somente caracterizadas por seu aspecto institucional na comunidade dos fiéis, ou pela sua função ética na sociedade ( talvez tenham se tornado, por demais, religião do Estado …)

Há um célebre texto do famoso filósofo Pascal, intitulado “ A aposta de Pascal”, que mostra que a fé cristã é uma espécie de desafio. Diz ele que se impõe uma alternativa: Deus existe ou não existe? É necessário escolher, porque estamos embarcados na existência e o sentido de nossa vida presente e futura depende da maneira pela qual nós nos situamos diante desse dilema. Pascal, que era matemático e um dos fundadores do cálculo das probabilidades, desenvolvia com toda lógica o interesse que existe na aposta da existência de Deus : “ A nossa proposição está numa força infinita, quando há o infinito a arriscar ;há um jogo no qual há semelhantes possibilidades de ganho como de perda e ainda o infinito a ser ganho … Se você ganhar, ganha tudo, e se você perder, você não perde nada”

Na visão de J. Batista Libânio, um dos bons representantes da reflexão direcionada para a teologia da libertação, “o crescimento das Seitas, deve-se ao fato da Igreja Católica ter deixado, logo após o Concílio Vaticano II, de insistir nos ritos e formas religiosas tradicionais, como a bênção, as procissões, a devoção aos santos. Ela não martelou mais na pregação das verdades eternas e na atuação do demônio. Não valorizou o milagre nem o apelo ao maravilhoso e extraordinário. Os fiéis ficaram, de certo modo, desprotegidos e sem referência religiosa “ ( Vinte anos de Teologia na América Latina e no Brasil, Vozes, 1999, p. 76).

Sebastião Heber Vieira Costa.Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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