Djanira Silva 16 de fevereiro de 2010

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É uma expressão que ouço desde menina. Meu pai costumava dizer: – Você pensa que sou rico? Deixe de ser besta, vá trabalhar. Minha mãe não se cansava de repetir: – Deixe de ser besta, não sou sua empregada. Assim, me criei ouvindo: deixe de ser besta, vá viver sua vida, deixe de ser besta, não chore por quem não gosta de você.
Se você pensa que tem o rei na barriga, bem merece ouvir: deixe de ser besta, acha, por acaso, que tem as tripas recheadas com pudim de caramelo, doce de leite ou pavê de chocolate? Está enganado, amigo, e, certamente, esquecido de que ali é uma usina que mói, remói e transforma odores, sabores e aparências. A sorte é que o couro do bucho é um das coisas mais bem feitas do mundo: não transpira nem é transparente.
Ninguém nasce limpo nem cheirosos. Os animais lambem as crias para limpá-las enquanto, o ser humano, com tanta importância e sabedoria, desde que nasce, tem mais é que tomar banho de verdade. A partir daí, todos os dias a limpeza é geral: dentes, sovacos, pés, etc., etc., etc., e ETC. Não conheço criatura que exale perfume.
A vida, engrenagem que nos envolve, é entregue sem fórmulas, manual de instrução ou mapa. É e será sempre um mistério.
Quem mudará, por exemplo, as normas que regem os destinos? Por que uma criança nasce no mangue e outra lá na casa de Xuxa? De quem é o arbítrio?
Somos recebidos num berço e devolvidos num caixão. O fim é igual para todos. Mesmo que se dê de formas e em lugares diferentes, a direção é a terra, o estacionamento de ossos onde, depois de retirado o reboco, restará apenas um sorriso furado. Afinal, o sujeito morre e sua besteira se perpetua nos que ficam pensando, pensando ainda, que são importantes: flores, discursos, missas e túmulos nababescos, verdadeiras obras de arte, decorados com estátuas de anjos e santos para guardar a coisa em que nos tornamos. Isto mesmo, coisa. O homem enquanto vivo, é pessoa, sujeito de direito, podendo ser vítima de seqüestro. Depois de morto torna-se objeto, coisa, passível de roubo ou de furto tal e qual uma mesa, uma cadeira, uma cama. Daí ser errada a expressão: ali tem uma pessoa morta. Pessoa? Já era.
Transformados em adubo, alimentamos a terra que alimenta as árvores, que alimentam os frutos que alimentam a vida.
Não há de faltar quem me chame de irreverente. Não estou mentindo nem inventando. Tenho o maior respeito pelos mortos. Acho que todos sentimos saudades dos nossos, que além de tudo são pacientes, esperam um ano a festejada visita de finados, enquanto a vida continua, até que chegue outro novembro, se antes disto não acabar o tempo.
Perdemos um ente querido? Só nos restam remorsos pelo mal que fizemos, pelo bem que deixamos de fazer. Por maior que seja o nosso amor, somos os primeiros a providenciar o bota-fora.
A frase “até que a morte nos separe”, deve ter sido pronunciada pelo Criador quando juntou corpo e alma. Depois de separados, só temos notícias do corpo, a alma não deixa endereço.
Temer ia morte é bobagem, o ruim é o antes. O depois é mistério. E é deste mistério que se tem medo.

Deixemos de ser bestas, a realidade da vida é outra. Quem pensa ter o reio na barriga deve estar esquecido de que ali é lugar de amebas, lombrigas e outros bichos. O rei merece um lugar melhor.
Os Evangelhos advertem: vigiai e orai para não cairdes em tentação.
Na verdade, as tentações são muitas e a vaidade é uma delas, fazendo-nos acreditar que mal botamos o pé na rua tornamo-nos alvos de todas as atenções. Isto é muito natural na juventude, quando temos aquela idiota sensação de eternidade e nem ousamos pensar na morte que nos anula, e na velhice que nos deixa com ares de almas penadas.
Velho, na rua, só é visto quando cai.

Outro dia, liguei para um amigo, boêmio inveterado e ateu. Surpreendi-me quando soube que havia ido à missa. Logo ele que falava mal da Igreja, anjos e santos. Só encontrei uma resposta para a devoção tardia: a velhice. Daí, concluí: queixa de velho só quem ouve é Deus.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Deixe de ser Besta –

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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