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A história da Bíblia é marcada pela presença da água: água que destrói, que salva, que purifica. Os textos do Gênesis, que tratam do momento primordial da criação, apresentam o Criador tirando as águas do caos inicial e separando-as da terra .Ele as separa em dois lugares: no alto, onde fica a chuva e em baixo, onde estão o mar e os rios. Desde o início existe a consciência de que esse elemento é indispensável à vida. De outra forma, só haveria deserto e todo ser vivo seria votado à morte. De forma inversa, isto é, se ela vem em superabundância, ela transtorna a ordem do universo, ameaçando a própria vida, como recentemente em Santa Catarina e em outras regiões do Brasil. Assim, a água é portadora de vida e de morte, e se torna critério de boa ou má conduta moral. Em quantidade suficiente ela é manifestação da bênção de Deus para o seu povo, enquanto que a seca é sinal de maldição para aqueles que são injustos, conforme essa visão bíblica. Nesse sentido, a passagem do Mar Vermelho representou uma triagem divina com relação aos perseguidores dos hebreus.

A festa da Purificação de Nossa Senhora, dia de grande festa em Santo Amaro, precedida de novenário e da tradicional lavagem, marca essa simbiose do cristianismo com a tradição judaica. Não é em vão que o velho axioma afirma que a “Igreja é filha da Sinagoga”. Para o mundo judeu a relação com Deus, que é o Santo e Puro por antonomásia, implica numa atitude de pureza para o fiel. A exigência dessa condição se traduz através de regras de toda espécie, mormente na área alimentar e por numerosos outros ritos de purificação. O livro do Levítico detalha abundantemente as prescrições a esse respeito : na alimentação, sexualidade, doenças , sepultamento e no próprio fato de dar à luz. Os ritos de purificação comportam lavagens e até sacrifícios, isto é, imolação de animais. No antigo Templo de Jerusalém havia áreas reservadas às purificações antes dos fiéis entrarem para orar. Hoje, ao lado do Muro das Lamentações, há pequenos lavatórios, como pias com torneiras, onde os que chegam lavam as mãos, e, alguns, até, o rosto, antes de entrarem no recinto. Talvez o costume católico das pias de água benta, à entrada das igrejas, tenha vindo dessa tradição.

A festa da Purificação, no Ocidente cristão, teve início nos séculos VI e VII, pois corresponde aos 40 dias do nascimento de Cristo. No Oriente cristão, como o Natal é celebrado em 6 de janeiro, a festa é celebrada mais adiante.

O sincretismo, ou outro termo mais apropriado, está sempre presente nas celebrações das religiões. Essa festa, por exemplo, em Roma, tomou um caráter penitencial e quis se opor aos ritos pagãos das “lustrações”.

Em Salvador, essa cidade-templo, que não é em vão que se chama ”de Todos os Santos”, o dia 2 de fevereiro é marcado pela festa de Iemanjá, a mãe das águas. O Rio vermelho se torna uma praia sagrada envolvida com tantas oferendas. A água exerce um fascínio sobre as pessoas e nas religiões é lugar de vida e de morte. Vi no Togo a festa de Mamiuatá, que é uma figuração de Iemanjá. Senhoras entram em transe, de mar a dentro, com jarros e buquês de flores para ofertar à Mãe das Águas e, em determinado momento, elas perdem os sentidos. Para não morrerem afogadas, há pescadores de prontidão para salvá-las e trazê-las à terra firme.

Sempre me impressionou essa ligação da água, especialmente do mar com a mãe. Talvez seja por isso, que em francês a grafia das duas palavras seja bem próxima e a pronúncia praticamente a mesma : La mère, a mãe e La mer, o mar.

Sebastião Heber. Prof. adjunto da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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