teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Neste ano em que se celebra o centenário de Dom Helder Camara, muitas lembranças e recordações do grande Dom, que foi um dos presentes maiores de Deus à Igreja do Brasil têm sido desentranhados e trazidos à luz novamente. Limpos da poeira do esquecimento por nossa às vezes curta e ingrata memória, brilham como estrelas de primeira grandeza realimentando nossa vida espiritual e nossa capacidade ética.

Talvez um dos mais importantes seja a re-visita do chamado Pacto das Catacumbas. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, cerca de 40 Padres Conciliares celebraram uma Eucaristia nas catacumbas de Domitila, em Roma, pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus.

Após essa celebração, firmaram o “Pacto das Catacumbas”. O documento é um desafio aos “irmãos no Episcopado” – aos bispos presentes, portanto – a levarem uma “vida de pobreza”, a construir uma Igreja que se queria “servidora e pobre”, como sugeriu o papa João XXIII. Os signatários – dentre eles, muitos brasileiros e latino-americanos, sendo que mais tarde outros também se uniram ao pacto – se comprometiam a viver na pobreza, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral.

O texto teve forte influência sobre a Teologia da Libertação, que despontaria e floresceria nos anos seguintes. Um dos signatários, propositores e mesmo articuladores do Pacto foi Dom Hélder Câmara. O belo texto do Pacto é altamente inspirador para toda a Igreja hoje como ontem. Aqui o transcrevemos do livro “Concílio Vaticano II”, Vol. V, Quarta Sessão (Vozes, 1966), organizado por Dom Boaventura Kloppenburg, pp. 526-528.

PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de “beneficência” em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral – dois terços da humanidade – comprometemo-nos:

• a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

• a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

• esforçar-nos-emos para “revisar nossa vida” com eles;

• suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

• procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores…;

• mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

AJUDE-NOS DEUS A SERMOS FIÉIS. Com essas humildes e fervorosas palavras terminavam os bispos seu pacto. Elas precediam suas assinaturas. Que a mesma prece habite nosso coração e que o pacto das catacumbas, devidamente adaptado a nosso estado de vida, quer sejamos leigos, religiosos ou clérigos, possa ser o norte de nossas vidas.

Maria Clara Bingemer é autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/ágape, entre outros livros.

Copyright 2009 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

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