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A cultura original do africano era profundamente religiosa, mas do mesmo modo com que foi levado à força ao Brasil, também foi levado ao cristianismo, sem uma suficiente e prévia evangelização. Os trechos das “ Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” não deixam dúvida sobre a obrigatoriedade dos senhores em promoverem a formação religiosa e, sobretudo, quanto à liberdade de receber o batismo. Mas, na prática, sabemos que a catequese e a instrução foram absolutamente insuficientes. A alma do africano permanecia naquelas condições em que vivia, profundamente “animista”, no sentido da ligação com seus cultos e sob o impacto da primeira endoculturação. Porém, o catolicismo que ele encontrou, originário da mentalidade portuguesa, era extremante exteriorizado, com uma excessiva devoção aos santos, com uma grande variedade de imagens e, sob certos aspectos, totalmente ligado às práticas externas da religião. A isso o escravizado tratou de integrar-se e sob certo ângulo sentiu-se bem, pois houve uma mudança do orixá ao santo, porém, em relação à mentalidade, essa permanecia a mais arraigada nas práticas da África.

Gilberto Freyre cita e contesta a crítica feita ao negro de que ele tinha uma tendência natural para as orgias sexuais e sentimentos inferiores, de um modo geral. Discorda mesmo de Nina Rodrigues que não acreditava na capacidade do negro de elevar-se até a visão do catolicismo, como também Oliveira Martins, que dizia que “o negro é antropologicamente inferior”. Diz Freyre que “é absurdo responsabilizar o negro por algo que não é obra sua, mas era fruto do sistema social econômico”, no qual ele era uma peça passiva. E ainda, citando observações de Koster, ele mostra como os escravos, por outro lado, desejavam o batismo, porque os seus companheiros já batizados ironizavam com eles, chamando-os de “pagãos” ou “mouros” e, mesmo sem entenderem profundamente o sentido do ato, sentiam-se inferiorizados. A sociedade considerava-os menos homens e mais animais ferozes, até poderem participar do privilégio de irem à Missa e de freqüentarem os sacramentos. Nesse sentido, era o meio-social que levava o negro ao batismo, pois melhorava o seu status.

Já na época abolicionista, Nabuco defendia os negros, dizendo que o mau elemento não era o negro em si, mas o negro reduzindo à escravidão. Os autores são unânimes em que os escravos, apesar das imposições da cultura e da religião dos brancos, conseguiam manter os seus costumes e tradições, sobretudo as religiosas:” Acreditava-se que, lavados pelas águas lustrais do batismo, o negro deixava todo o seu passado milenar.Mudava-se como por encanto.A verdade, no entanto era outra.O escravo continuava o mesmo. Apesar da faina incessante a que era obrigado e dos rigores religiosos da colônia, não abandonava seus cultos; naturalmente modificava-os, adaptando-os ao novo meio”.(VIANA FILHO 1976,p.95)

A religião estava ligada ao governo de tal forma, que num certo sentido, o batismo era um negócio do estado. Para identificar o que já fora batizado, era marcado no peito com uma coroa ou uma cruz. Podemos imaginar, não somente na pele, mas sobretudo no psiquismo, o que representava esse primeiro contato com a nova religião e os “novos deuses”. A marca era também sinal da quitação do imposto pago à coroa por cada “peça”. D. João VI, na sua fase no Brasil, proibiu essa prática, em 1813; ordenou que apenas se colocasse uma gargantilha no escravo.

Além da agressão por meio dos ritos forçados, como no caso do batismo, o negro enfrentava o drama da travessia marítima que era tão dura que os companheiros de uma mesma viagem se chamavam “malungo”. De fato, podemos dizer que, na visão daquela época, a Igreja preocupava-se mais em salvar as almas dos escravos do que libertá-los. A Lei de 1756, que obrigava os navios a terem capelães dizia: ”Que nenhum escravo seja embarcado sem que tenha sido batizado cuidadosamente, a fim de que nenhum deles, morra, sem ter recebido esse sacramento, sendo esse o maior serviço que podem prestar à glória de Deus todos os que trabalham no comércio dos escravos”.(BERGMAN,1978,p.63).

Viajantes estrangeiros também deixaram suas opiniões sobre o nível religioso dos escravos e, em particular, sobre sua preparação ao batismo. Sobre este assunto diz John Trubell: “Os escravos do Brasil são tratados quase como filhos da família e há o maior cuidado em batizá-los, ao menos instruí-los nos elementos da fé cristã. Poder-se-ia propor a questão: os escravos ganham, ou não, infinitamente mais com a troca de bárbara liberdade por essas vantagens de instrução e proteção seguras?”(Apud BASTIDE,1971,p.493).

Também G. Freyre diz : “Sem pretender considerar aqui o grau de cristianização atingido pela massa escrava…. alguns se tornaram tão bons cristão quanto os senhores. Capazes de transmitir às crianças brancas um catecismo tão puro quanto o que recebiam das próprias mães”.(FREYRE,1961,p.493).

Por outro lado, diz também R. Bastide que não podemos nos fiar nessas “imagens idílicas” da escravidão brasileira, pois os mesmos viajantes que mostram a brandura e a bondade dos senhores, citam também o alto índice de suicídios, exatamente nos mesmos engenhos dos senhores considerados “bons”.

Sebastião Heber Vieira Costa. Prof. Adjunto da Antropologia da Uneb e da faculdade 2 de Julho. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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