O olhar de um comerciante francês sobre a Bahia e o Recife
No tempo de D. João VI, (1816-1818)

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Introdução

Através de Ferdinand Denis sabia-se da existência de um documento de autoria de L. F. Tollenare, em Paris, na Biblioteca de Sta. Genoveva, escrito entre 1816 e 1818. Um século mais tarde, chegou ao Brasil uma cópia dessa narrativa, traduzida por Alfredo de Carvalho, que viria à luz no volume 61 da Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco, a parte relativa a este Estado e no volume XIX do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a segunda parte, relativa a esse último.

“Notas Dominicais”, é o nome que ele próprio deu às suas observações escritas aos domingos no seu “retiro” da Vitória, como chamava ao lugar em que habitava.
Oliveira Lima descreve que em 1816, depois de curta estada em Portugal, Tollenare, natural de Nantes, veio para Pernambuco negociar algodão;depois foi à Bahia, de onde regressou para a Europa em princípios de 1818.

É importante sublinhar que quando cita a vinda da Família Real para o Brasil, prefere falar no eufemismo da “Revolução de 1808,” omitindo, simplesmente a invasão a Portugal.

Primeiras Impressões

Quando Tollenare chegou às terras brasileiras, tomou-se de espanto com as diferenças nos costumes, parecendo até “que vivia no meio de gente de uma outra natureza”.
Descreve com detalhes a fauna e a flora,com minuciosas notas sobre a cultura da cana e o modo de viver dos senhores e escravos. Tem singulares observações sobre a vida religiosa, o estado das ordens monásticas e descreve a desmoralização do clero.

Converteu as suas notas num livro, que, na sua tradução, tem cerca de 370 páginas e nele dedica cerca de 1/4 à Bahia e os demais 3/4 às observações feitas em Pernambuco. Na capital do Recife chega no final de 1816, mas só começa a registrar os acontecimentos a partir de março de 1817, e continua a escrever até meados de julho, quando vai à Bahia.

Causa-lhe espanto, na visita a Pernambuco, a descoberta das frutas tropicais, que depois encontrou na Bahia : o cajueiro, a mangueira, mas que “a jaqueira é a mais curiosa”. Da banana, passa a descrevê-la como um dos principais alimentos do país. Mas é a mandioca que tem um papel mais importante pois é a base de 7/8 dos habitantes de Pernambuco. Ele cita o naturalista alemão Sellow, que acompanhou o Príncipe Maximiliano de Neuwied na viagem que fez ao Brasil de 1815 a 1817 e que enumerou mais de 30 espécies de mandioca no Brasil. Dá-lhe um prazer especial ver pela primeira vez, uma plantação de cafeeiros.

Religião e escravidão

Sobre a religião e a escravidão , afirma que aqueles que não foram batizados em Angola ou Moçambique, ou em outros lugares onde não há governadores portugueses, são-no ao desembarcarem no Brasil. Assiste a casamentos religiosos de negros,com o consentimento do senhor, mas se espanta que esses memos senhores possam vendê-los separadamente, até os filhos pequenos. Mas, mesmo assim, os escravos pedem a bênção aos seus senhores. Presenciou a chegada de um grande número de navios negreiros da Costa da África e de Moçambique :” Amontoados no porão, acorrentados (…); a alimentação consiste em farinha com feijões – não apresentam probabilidade de revoltas”. Alguns negros de sua nação vêm conversar com eles, para dar confiança aos recém-chegados. que já vêm batizados de Angola ou comenta sobre a distância entre teoria e prática com relação às atenuações das leis portuguesas que preconizaram até recursos ao Juiz, no caso de penas severas. Foi permitido aos escravos formar entre si Irmandades a exemplo dos homens livres – elas se tornaram catalisadores da cultura negra.

Revolução Pernambucana

Ele vivenciou a Revolução Pernambucana do começo ao fim ,isto é, de março de 1817 até 20 de maio do mesmo ano. Essa reação política foi permeada pela presença de inúmeros padres e pode até ser chamada de “ a revolução dos padres”. E conheceu muitos deles privando da amizade com alguns, como o Pe. João Ribeiro, que fez parte do governo revolucionário, juntamente com mais cinco companheiros e que se enforcou, antes de ser condenado. Há um outro, que se tornou famoso, é o Pe. José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, o Pe. Roma, que “foi enviado à Bahia para revolucionar essa Província “.

Apesar do clima criado pela Revolução, a Semana Santa foi realizada como de ordinário, o que reflete dois comportamentos eclesiásticos, o daqueles que entram no interesse político e os que separam de forma clara as duas atividades

Chegada à Bahia

Em 27 /07/1817 chega à Bahia, no navio inglês L’Agreable que vem em busca de frete, e foi “uma viagem assaz incômoda”.

Ele fica deslumbrado com o cartão postal que representava a Baia de Todos os Santos: “Neste mesmo lugar, onde há tão pouco tempo se encontravam a barbárie e os desertos, encontro uma grande e populosa cidade, habitação da opulência, das artes, dos prazeres e da corrupção dos costumes que os acompanham. A vista da Baia de Todos os Santos é uma das mais belas que se pode contemplar; julgo-a superior à do Tejo”.E vai descrevendo a geografia da Baia : Ilha dos Frades, de Maré, Senhor do Bonfim, antigo Colégio dos Jesuítas, os Fortes. Mas é o Teatro da Bahia, com suas representações religiosas que lhe rouba um elogio especial :”É um nobre edifício que faria honra a alguma das nossas cidades de segunda ordem na França. O Bispo as ordena habitualmente pela quaresma”.

Lembra o Conde dos Arcos e o coloca como um dos homens mais cultos da Bahia.
Diante de sua morada está a igreja da Vitória, e vê os palanquins transportando as senhoras quando iam à Missa, escondendo-se por trás de véus. As negras têm turbante, carregadas de cadeias de ouro , mas sempre “ trazendo amuletos ao seio”.Observa a indiferença dos homens na Missa e calcula que “há dez ou doze negras para cada branca”.

A população branca constitui apenas 1/10 da totalidade e é “quase toda laboriosa e abastada”. Fora das cidades atinge a 1/3 e “é toda preguiçosa e pobre”. Nas cidades a proporção dos negros é maior, por que ali residem as pessoas ricas que mantém numerosa criadagem.

Falando sobre a Ilha de Itaparica, onde foi caçar , e pegou bicho-de-pé, tece o comentário : “Dizem que os ingleses tinham a intenção de lá se estabelecerem e dominar a Bahia”.

Conclusão

Concluindo, cita que“residiu apenas em duas grandes cidades, Pernambuco e Bahia.Os prazeres consistem no repouso, nas cerimônias religiosas ( ele fala nas cerimônias como’um espetáculo divertido’), no jogo, na libertinagem. Os europeus acham-lhes poucos encantos. Ocupei-me mais dos meus negócios do que em fazer observações”.Como em Pernambuco, na Bahia ele lamenta o desinteresse pelas artes. Mas aponta os ricos templos, com a talha dourada e a música, ‘como veículo para a manutenção desses valores na nossa cultura.

De repente, de forma abrupta, ele interrompe a narração, que descrevera até 23 de novembro de 1817 e diz na última linha dos seus escritos :” O resto. perdeu-se…”

De fato, na Bahia, ele permanece até o início de 1818, mas não deixa mais registros. O que se perdera? Os textos foram destruídos, ou ele deixou de registrá-los, foram queimados casualmente? A imaginação pode aqui dar seu vôos.

De qualquer forma, sob o ponto de vista sócio-religioso, ele retrata uma profunda e singular mistura entre sagrado e profano, que na palavra dele, “só era notado pelos estrangeiros”.

Referências
BASTIDE,Roger.O candomblé da Bahia.S. Paulo:Cia das Letras,2001
FREYRE, Gilberto .Casa Grande e Senzala
TOLLENARE,L.F. Notas Dominicais, tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil em 1816,1817 e 1818. Tradução : Alfredo de Carvalho.Salvador:Progresso Ed.,1956

Sebastião Heber Vieira Costa.Prof. de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu, membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris e da Associação Nacional de Interpretação do Patrimônio.


Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Religião e Gênero”, no Simpósio Internacional “A Família Real na Bahia:1808-2008”,realizado no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, de 13 a 16/05/2008.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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