O Natal marca um acontecimento inusitado na história da humanidade: “o Verbo se fez carne”, anuncia o evangelho de João (1, 14). Santo Atanásio, no século IV, dizia que o Verbo, ao se fazer carne, verbificou todo o Cosmo. Toda a natureza está prenhe da presença de Deus.
Ainda não sabemos se o Universo é eterno, finito ou ilimitado. De qualquer modo, o Universo é o ventre de Deus. Todos haveremos de viver um outro Natal, definitivo, ao irrompermos junto Àquele que nos deu, em 25 de dezembro, a presença do Menino.
Natal é o momento de voltarmos a ser meninos. Abandonar tudo aquilo que, em nós, não é próprio de menino: sentimentos de vingança, mágoa, ressentimento; lembrança de coisas más; ambições desmedidas… Esses não são sentimentos de menino.
O Natal nos remete à criança que nos habita e que, muitas vezes, sufocamos, impedimos que ela atue em nossa subjetividade e nos permita ser adultos por inteiro, resgatando e assumindo aquilo que somos e fomos. Só assim conseguiremos ser plenamente humanos. Quem é plenamente humano se diviniza.
Quanto mais humanos somos, mas nos aproximamos de Deus. A divinização que Jesus propõe não implica deixar de ser humano, evitar o humano ou desumanizar-se. É justamente o contrário: a plenitude da humanidade coincide, no próprio Jesus, com a plenitude da divindade.
Quando olhamos os símbolos do Natal – o presépio, o boi, o asno, os pinheirinhos, os pastores -, tudo se torna sentimento. Perdemos um pouco o arcabouço lógico, essa inútil tentativa de compreender, através da razão, o mistério da fé. Então, somos tomados por uma energia, uma vibração, um encanto, que provocam empatia com o mistério do Menino Jesus na manjedoura.
Esse o momento da poesia, em que a fé é vivida, não como esforço de entender ou explicar Deus e os mistérios do Universo, mas na intensidade da comunhão. A fé se faz companheira, partilha e cumplicidade com o projeto de Deus na história.
Se a história humana não tivesse sido marcada pela irrupção de Deus, todo o nosso esforço de justiça, alegria, paz e fraternidade seria vão, pois as forças da morte prevaleceriam sobre os sonhos de justiça.
Contudo, sabemos que, naquele Menino, Deus entrou em nossa história pela porta dos fundos. Não entrou como filho de César ou do faraó. Entrou como filho de um carpinteiro e uma camponesa. Filho de uma família tão pobre que não encontrou lugar em Belém. Teve de nascer no cocho, lá onde se guardam os animais.
Quantas vezes Jesus não encontra lugar também no presépio do nosso coração! Este se impregna de vaidades, de luxos, de prepotências, transformando-se num hotel cinco estrelas, no qual não há lugar para o filho de Maria e José.
O próprio Jesus nos advertiu: “Felizes os que têm espírito de pobre” (Mateus 5, 3). Espírito de abertura ao outro, ao novo, ao inusitado, ao desafio, à partilha, à solidariedade, à justiça e à possibilidade de renascer em plena vida.
Sem fazer do coração presépio, o Natal não tem razão de ser. É Natal de esvaziar pratos e garrafas, de saciar o estômago e deixar o coração vazio.
Celebrar o nascimento de Jesus, presente que nos foi dado por Deus, é nos fazer presentes ao próximo, imagem e semelhança de Deus. Na medida em que nos tornamos presentes em outras vidas, reatualizamos o verdadeiro sentido do Natal.
Quem ama se interessa pela vida da pessoa amada. Daí surgiram os relatos de Mateus e Lucas a respeito do nascimento de Jesus. Os evangelistas não tiveram a intenção de fazer uma reportagem histórica das circunstâncias reais e verdadeiras em que Jesus nasceu. Não se pode ler o Evangelho com olhos de quem faz pesquisa histórica.
O que Mateus e Lucas querem nos passar – ao descreverem Belém, o presépio, os pastores, a estrela de Davi, enfim, toda a imensa poesia que perdura em nosso inconsciente coletivo – não é tanto a história de Jesus, mas sim o olhar da fé sobre o acontecimento Jesus. E o olhar do amor, que brota do coração.
Portanto, quando se descreve a sagrada família, o encontro do Menino com os doutores da lei, ou quando se fala da matança de crianças inocentes promovida por Herodes, não interessa tanto se isso ocorreu historicamente. Interessa que, ao narrar tais acontecimentos, os evangelistas tecem uma relação simbólica da figura de Jesus com os grandes personagens do Antigo Testamento, especialmente Davi e Moisés.
A matança de crianças inocentes já ocorrera no Êxodo, por ocasião do nascimento de Moisés, tanto que sua mãe viu-se obrigada a escondê-lo, pois o faraó, desconfiado de que o Libertador havia nascido, ordenou o sacrifício de todos os bebês masculinos (1, 15-22 a 2, 1-10).
Ao aplicar aqueles fatos à pessoa de Jesus, o evangelista quis acentuar que Jesus é, de fato, o novo Moisés, o Grande Libertador. E, assim como Jesus deu prosseguimento aos ideais de Moisés, devemos hoje abraçar as propostas contidas no Sermão da Montanha (Mateus 5, 1-12). Isto, sim, é Natal.
Frei Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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