Meu casaco era verde, o que levou alguém (quem teria sido?) a casar a cor com a da camisa do Palmeiras. Foi assim que soube que, em São Paulo, existia um time com o nome de Palmeiras. Nisso se resumia o meu conhecimento do futebol paulista, diferentemente do que ocorria com o carioca, cujos times habitavam meu mundo: Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, América, etc.

Meu, não, de Itabaiana, do meu tempo de menino, a respirar, exclusivamente, o campeonato carioca. A conquista do título de 1956 (primeiro, da minha lembrança), pelo Vasco, levou alguns torcedores vascaínos a promoverem, com caixão e tudo, o enterro do Flamengo, com direito a passagem por pontos de torcedores do Flamengo. Não havia gozação maior. No Natal de 1957, Quinho se aproxima de papai, em plena feirinha de Natal, na Praça da Santa Cruz, para avisar, como se papai desse alguma importância aos resultados de partidas de futebol, que o Botafogo tinha goleado o Fluminense, na final do campeonato carioca, por 6×2. Eu, que segurava a mão de papai, ouvi e gravei a notícia. Um torcedor do Vasco (quem teria sido?) mandara pintar, no platibanda de sua casa, no trecho que se abria, logo depois do Cemitério, um enorme escudo do Vasco, que despertava a atenção de todos. Antonio Lima, que vendia feijão na feira e tinha um bar na Praça da Matriz, era torcedor do Vasco e alvo de piadas quando o seu time perdia. Chico Bateria, Zé Pinto e Marcelino torciam pelo Botafogo. Antonio Fernandes era torcedor do Fluminense. A outra multidão, grandiosa e numerosa, vestia as cores do Flamengo.

Em 1958, ante um final com o Vasco, Flamengo e Botafogo, sagrando-se o primeiro campeão carioca, no super-super campeonato (não esqueci o título), Pedro Ivo, servidor do Banco do Brasil, que não conheci, mas que deixou sua marca na arte de charges (dele, tenho uma, que, um dia, se publicar o Anedotário Histórico e Filosófico de Itabaiana, vou inserir na capa, se outra idéia, daqui para lá não alterar o projeto), elaborou uma charge retratando a conquista vascaína, via de três boxeadores. Um, com a camisa do Vasco, esmurrando o outro boxeador com a do Flamengo, e atrás deste, recebendo, também, o impacto do murro, outro, com a do Botafogo. Seu Joãozinho Retratista fotografou o desenho, que circulou em cópia, para alegria dos vascaínos e tristeza dos flamenguistas e botafoguenses. Evidentemente que Pedro Ivo só podia ser torcedor do Vasco para bolar infame provocação.

Na Biblioteca Pública Dom José Tomaz, na década de sessenta, folheei muitos exemplares da Revista Ilustrada de Futebol (seria esse mesmo o título?). Uma revista fina, com muitas fotografias de jogadores, a capa colorizada (no que não tenho certeza absoluta), os desenhos de bonecos com a bola nos pés para reproduzir gol por gol de cada rodada. Os bonecos representavam os jogadores, a legenda do nome de cada um e dos adversários, a bola passando de um para outro, o goleiro, com os braços abertos, enquanto a pelota atingia a rede. Depois, seria a vez da Revista de Esporte, menor, em papel não lá muito bom, de leitura semanal e obrigatória.

Quando o Brasil foi campeão do mundo, pela primeira vez, em 1958, Fefi comandou um pequeno carnaval, na Praça da Matriz, que Romeu fotografou. As fotos, expostas, durante muito tempo nas pratileiras de seu atelier, me chamavam a atenção, toda vez que passava pela Rua da Vitória, em direção a loja de papai, no Largo da Feira. A par das fotos de Romeu, O Cruzeiro trazia os gols do Brasil, em fotos amarronzadas, Pelé beijando a bola depois do gol contra o País de Gales, fotos que a gente via e revia, não se cansando de aprecia-las, o retrato dos campeões do mundo, titulares e reservas, expostos em carteiras, uma das quais, ganhei e conservei por muitos e muitos anos.

Os jogos eram acompanhados pela transmissão das rádios cariocas. Mamãe escutava a Rádio Nacional, a voz do locutor muitas vezes abafada pelos chiados, atenta ao que ouvia enquanto costurava algum vestido em uma máquina Singer, encarregando-se de me dar à notícia na manhã seguinte, procurando, quando o Flamengo perdia, justificar a derrota, lastimando um gol perdido, uma falta não marcada, um gol do adversário em pleno impedimento, circunstância que suavizava a notícia da derrota, visto que, afinal, não fosse tudo isso, o Flamengo teria ganho. Era o prêmio de consolação.

Em 1959 (ou teria sido em 1960?), o Flamengo enfrentou o Bahia no antigo Estádio de Aracaju, em um sábado à noite (ou teria sido pela tarde?). O placar foi elástico: 4×3 para o Flamengo, que tinha, entre outros, Fernando no gol, Moacir, Henrique, Dida e Babá no ataque. De Itabaiana, saíram veículos superlotados de torcedores, desafiando a poeira da estrada de rodagem (eram assim que a denominavam), para ver o Flamengo jogar. No outro dia, cada torcedor se tornava um herói, a contar, na rua, o que testemunhara, a honra de ter visto os jogadores do Flamengo, como se os atletas se transformassem em verdadeiros semi-deuses. E a gente, que acompanhara o jogo pela transmissão da Rádio Liberdade, via Silva Lima, ouvia atento, para não perder uma só palavra.

E os lanches de gols do campeonato carioca que a gente via no cinema, dentro do noticiário, antecedido por uma música, mais ou menos assim – que bonito é -, suficiente por si só para balançar o coreto de todos, a alegria de ver um gol no Maracanã, privilégio que provocava gritos da grande maioria, como se fosse uma transmissão ao vivo, termo que, à época, não nos era familiar. Cheguei a ganhar um negativo, cortado do jornal do noticiário, com o time do Flamengo.

O Rio de Janeiro, com a mania de ser capital, primeiro do Império, e, depois da República, era, também, o centro exclusivo do mundo do futebol brasileiro, acompanhado pelas ondas da Rádio Nacional, da Rádio Globo, da Rádio Tupi. Lá em casa, a Rádio Nacional era ouvida toda a noite, religiosamente, como hoje se liga a tv para se assistir aos programas da Globo. Quase a mesma coisa. Quando a seleção brasileira chegou ao Brasil, de volta da Suécia, foi pelas ruas do Rio de Janeiro que os atletas desfilaram, em carro dos bombeiros, na confirmação de que o Rio era, de fato e de direito, a capital do futebol.

Esse mundo da infância ficou de forma tão forte que, ainda hoje, apesar das décadas já ultrapassadas, quando ouço alguém afirmando que torce apenas pelo São Paulo, ou pelo Santos, ou Palmeiras ou, ainda, pelo Corinthians, fico espantado em não ver citado um só time carioca, porque, naquele tempo, o futebol, que a gente aqui conhecia e acompanhava, era, exclusivamente, o carioca. Falei.

(*)[email protected]
Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]