Frei Betto 10 de janeiro de 2010

Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para afegãos e iraquianos, e os soldados usamericanos sob ordens de um presidente que qualifica de “justas” guerras de ocupações genocidas? Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes conscientes dos fracassos de Copenhague que salvam a lucratividade e comprometem a sustentabilidade?

O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E alertou meu confrade Tomás de Aquino: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade.
A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou “condenados da Terra”.

A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é “a grande aventura do desejo”.

Estimulado pela propaganda, nosso desejo exila-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.

Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários de seu rebanho, espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo?

Na contramão do consumismo, Jung dava razão a são João da Cruz: o desejo busca sim a felicidade, “a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. Trata-se de uma aventura espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.

Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos ofensivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com que nos é generoso; prepotentes com que nos acolhe em solícita gratuidade.

Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade, escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.

Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos!

Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, se constitui num gritante apelo para nos engajarmos na busca de “um outro mundo possível”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.

O ano será novo será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo produtivista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada numa economia solidária.

Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade, travestida de doces princípios; o ódio, disfarçado de discurso amoroso.

A diferença é que estaremos conscientes de que, para se ter um Feliz Ano-Novo, é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-se de si mesmo, virar-se pelo avesso e deixar o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Copyright 2009 – FREI BETTO – É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]