Nestes dias, a presidenta da Argentina liberou para o conhecimento público arquivos e documentos dos anos da ditadura militar argentina. No país vizinho, vários assassinos e torturadores já foram condenados e punidos. Eles se esconderam sob insígnias, nos organismos militares e até no mais alto poder executivo. Assim mesmo, generais e até presidentes foram levados a tribunais. Infelizmente, isso não ocorreu no Brasil com nenhum notório assassino ou chefe de tortura de civis, acobertado pelo poder militar.

Nos últimos dias, Paulo Vanuchi, ministro da Secretaria da Presidência da República para os Direitos Humanos e Tarso Genro, ministro da Justiça, têm trabalhado para que se aprove a constituição de uma Comissão de Verdade e Justiça, para investigar os crimes da ditadura militar brasileira e assim se dê uma satisfação de justiça a milhares de famílias que perderam entes queridos e até hoje não obtiveram o direito de saber como morreram e nem puderam enterrá-los dignamente. Infelizmente, o ministro Nelson Jobim e muitos generais são contrários a isso. Pretextam que seria uma atitude de revanchismo. Segundo eles, a lei de anistia (1979) teria absolvido os crimes de um lado e do outro das lutas políticas, no tempo da ditadura. Ao defender tal opinião, vão contra todas as leis internacionais e contra o que tem ocorrido no mundo todo. Vários países se libertaram deste passado ao tornar transparente o que aconteceu. Na África do Sul, por exemplo, depois do fim do sistema do apartheid, foi importantíssimo a implantação do programa da Comissão da Verdade e da Justiça. Não acabou com as injustiças sociais nem garantiu igualdade social, mas colaborou para acabar com a impunidade oficial.

No Brasil, estes intelectuais de direita colocam no mesmo paralelo a violência cometida por bandos de militantes, em sua maioria, mal saídos da adolescência e que reagiam aos desmandos da ditadura e, do outro lado, uma ação repressiva de militares encastelados no poder do Estado e com toda a força que isso lhes dava. Ao tomarem tal posição, solidarizam-se não com os militares corretos que agem dentro da justiça e do direito e sim com os assassinos e torturadores que se acobertam com o manto protetor das forças armadas.

Houve, sim assassinatos e alguns fatos de violência praticados por grupos de esquerda, na tentativa de tomar o poder em uma região ou roubar um banco para financiar a luta armada.

Embora possamos não concordar com os métodos praticados pela esquerda, não se pode igualar esses atos de desespero à postura institucional de chefes militares que, com o poder nas mãos e em nome do povo brasileiro, torturaram e assassinaram jovens já desarmados e presos, entregues sob sua responsabilidade. Gandhi ensinava que, entre uma luta violenta e uma omissão passiva ou reles atitude de covardia, ele preferia a luta armada. E na encíclica Populorum Progressio, o Papa Paulo VI retoma o ensinamento de Santo Tomás de Aquino que, em caso de ditadura evidente e prolongada, os cristãos têm o direito e até o dever de reagirem como for possível, até em último caso, com força e violência. Foi o que alguns grupos revolucionários da época tentaram fazer no Brasil dominado pela ditadura. Alguns foram mortos na própria luta e, entre os que foram presos, muitos foram torturados e assassinados dentro dos porões da ditadura que, no Brasil, apesar das aparências em contrário, foi tão truculenta e sanguinária como qualquer governo totalitário e cruel pode ser.

A maioria dos jovens e adultos assassinados não mais acarretavam nenhum risco ao sistema. Foram vitimados por mera crueldade. Não tiveram acesso a nenhum julgamento objetivo e formal. Não tinham como se defender. Na época, um famoso coronel, especializado em torturas, afirmou: “Começamos a usar instrumentos de força para interrogá-los e convencê-los a falar. Se não cedem, entramos em uma segunda fase da tortura, por ódio e vingança. Em um terceiro momento, ao ver como, apesar do sangue e dos gritos, continuam dignos, os torturamos por um prazer que não sei explicar”.

Em casos como o de Stuart Angel, assassinado no Rio de Janeiro, nos anos 70, o júri julgou e absolveu um cadáver, fingindo que ele estava vivo. Alguns dos juízes militares que fizeram aquela farsa tinham participado das torturas e eram responsáveis por sua morte. Mataram o filho e depois organizaram um acidente mortal para a mãe que investigava os fatos. Isso fica claro no filme “Zuzu Angel” de Sérgio Rezende, disponível em DVD.

Atualmente, a imensa maioria dos movimentos e grupos que lutam pela constituição da Justiça e da Verdade, não quer revanchismos ou vinganças. Apenas, sabem que o Brasil não passará a uma nova fase de sua história, enquanto não tiver exorcizado este passado. Eu mesmo tive amigos que, no Recife, em São Paulo, ou no Rio, foram vítimas da repressão. Sentíamo-nos unidos, no Recife a Alanir Cardoso, Marcelo Mário de Almeida e a outros, assim como aos irmãos, amigos e companheiros de fé, frei Betto, Fernando Brito, Ivo Lesbaupin e Tito Alencar, dominicanos presos, dos quais alguns barbaramente torturados. Graças a Deus, nenhum deles foi desaparecido, mas conviveram com muitos companheiros e companheiras que tiveram este destino e até hoje muitas dessas famílias não tiveram acesso às circunstâncias da morte e a receberem os seus restos mortais.

Entre outros incidentes desagradáveis, eu mesmo vivi histórias opressivas. No sábado, 27 de abril de 1975, Dom José Maria Pires, então arcebispo da Paraíba, a irmã Maria Letícia Penido e eu visitamos presos políticos no presídio de Itamaracá e depois fomos a um bairro popular do Recife para almoçar com um casal amigo: Margarida Serpa Coelho (Peggy) e Henrique Cossard. Encontramos a casa cheia de militares armados. Eles tinham sido seqüestrados e ela estava grávida. Fomos detidos sob a mira de fuzis, desde a manhã até o fim da tarde e interrogados. No final, ao se dar conta de que haviam prendido o arcebispo de João Pessoa, nos libertaram. Naquela época, alguns padres já eram torturados e mortos (como o padre Antônio Henrique no Recife), mas a arcebispo ainda não ousavam tocar. O casal amigo foi solto depois de alguns dias e, graças a Deus, ela pôde continuar a gravidez em paz.

Quem segue algum caminho de fé, assim como quem não opta por nenhuma pertença religiosa, mas tem uma visão espiritual, renuncia a toda vingança e revanchismo. O objetivo da Comissão de Verdade é estabelecer o direito supremo e permanente da verdade como caminho político (não pode haver outro válido), definir a justiça dos fatos obscuros e evitar que fantasmas mal enterrados possam um dia, novamente, pela porta da cozinha, reentrar em nosso país e em outros do continente. Também vai definir uma Política de Direitos Humanos, como, por exemplo, defender que ocupações de terra não sejam sumariamente acabadas pela violência policial e que as multinacionais do campo tenham maior controle da sociedade civil em suas atividades.

É importante comprometer nossas comunidades, Igrejas e todas as tradições espirituais neste caminho de defesa da verdade e da justiça. Na Bíblia, o salmo 85 diz: “Quando a Justiça e a Verdade se encontram (isto é, quando são realmente valorizadas) é a Paz e o Amor que se beijam” (Sl 85, 10- 11). Conforme o evangelho de João, Jesus disse claramente: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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