O PRESÉPIO BIZANTINO


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A partir dos Concílios de Nicéia (325), de Constantinopla (381), de Éfeso (431) e de Calcedônia (440), é que a Igreja elaborou uma verdadeira Teologia da Encarnação. É essa Teologia que será a base de toda a iconografia cristã oriental. Porque Cristo se encarnou, viveu no nosso meio, fez milagres e prodígios, é possível agora pintar o seu rosto, seus gestos e principais acontecimentos de sua vida.O Ícone quer ser , portanto, a partir dessa Teologia ( da Encarnação), uma “presença”, a própria presença de Deus pois é dEle que ele fala. É como se fosse uma janela do infinito aberta sobre o finito.

Um dos mais representativos Ícones é o da Natividade de Cristo. Ele contem, basicamente, as mesmas figuras do Presépio de S. Francisco ( que é muito posterior aos Ícones). O presépio franciscano reflete Cristo na sua plenitude do sentimento humano, mas o bizantino quer mostrar de forma hierática, a austeridade da verdade bíblico-teológica.

Esse Ícone toma a sua forma quase definitiva na ocasião dos choques iconoclastas marcados pelo triunfo da ortodoxia em 843.

Nos primeiros séculos do cristianismo, o Natal era celebrado em 6 de janeiro, festa da Epifania ou de Reis, como é chamada popularmente.Mas na Igreja de Roma, essa festa é mudada em 354 para 25 de dezembro por conta do culto do sol, bastante generalizado naquela cidade e cercanias. O solstício de inverno marcava uma adoração pagã ao “sol invencível” – também significava a ligação da natureza com a salvação , o surgimento da luz e sua vitória sobre a noite. Alguns grupos cristãos separaram as duas festas, mas outros como os Armênios, os Coptas, a maioria dos Ortodoxos, os Russos, os Sérbios, os monges do Monte Athos, celebram até os nossos dias o Natal com a Epifania no dia 6 de janeiro.

A iconografia da festa tem como base o Evangelho de Lucas para o nascimento e o de Mateus para a presença dos Reis Magos. Há alguns elementos que fogem à tradição do Ocidente.: uma cigana dá banho em Cristo, mas não numa banheira qualquer, e sim um vaso que lembra uma pia batismal – esse elemento da presença da cigana tem como base os Evangelhos Apócrifos, que têm sido resgatados recentemente nos estudos exegéticos e históricos. Eles, os apócrifos, são uma leitura popular da vida de Cristo , de Maria e, muitas vezes, dos apóstolos.O Menino Jesus está vestido de branco, mas não é com roupas de recém-nascido, Ele está enfaixado como uma múmia, como eram sepultados os mortos no Oriente Médio (Lázaro, no relato do Evangelho, estava sepultado dessa forma). E há uma razão para tal indumentária : Aquele que nasce, está destinado a morrer, morte redentora, para a salvação da humanidade.É duro falar nesse tema na hora do nascimento (mesmo que todos que nascem devam um dia morrer…), mas para esse contexto, o importante é a verdade teológica de que é revestido esse momento.Também há a presença da gruta, que não é citada nos Evangelhos. Ela sugere as trevas da qual Cristo vem nos tirar como “luz do mundo” que é. Ele é chamado de “astro da vida” por vários Padres da Igreja, aqueles teólogos que, muitas vezes, são considerados também Doutores da Igreja. Eles vêm em Lúcifer o “astro da morte”, mas Cristo engaja a luta até a vitória final, na qual tudo será cheio de luz. Há um hino das Matinas cantado nessa época, na liturgia bizantina, que diz :”A Virgem, neste dia, deu à luz o soberano e a terra oferece asilo em uma gruta ao Inacessível”. Mas há um mistério nessa gruta. Ela parece conter não a manjedoura mas uma mesa para o sacrifício, para o holocausto supremo. É um altar em forma de túmulo que apresenta Aquele que é chamado de “ o pão vivo descido do céu”. Todos esses elementos , altar do sacrifício, faixas do morto, túmulo, luz, tudo aponta para a Morte e Ressurreição de Cristo, elementos já bem presentes na Teologia da Natividade e condensados nesse Ícone. O Menino está no centro, a cabeça no eixo de uma cruz invisível que estrutura o conjunto. A Mãe do Menino , Maria, repousa sobre um tapete de cor púrpura, sinal de realeza – ela praticamente domina a cena – pois a sua maternidade divina a faz Mãe de Deus (Teotokos, título que recebeu no Concílio de Éfeso, 431). Foi bem ela que O colocou no mundo, sem José, que no ícone, está relegado a um canto, passando pela tentação da incredulidade no parto virginal, tentado pelo demônio que está disfarçado sob a forma de um pastor. Maria parece meditar sobre os mistérios que virão : a Cruz, o túmulo, o sacrifício do seu Filho. Seu olhar ultrapassa o presente sem se deter apenas àquele momento ( como fazem normalmente as mães com seus recém-nascidos) – isso tudo confere à cena um elemento profético. O Ícone é encimado pelos Anjos, que no Antigo Testamento são considerados “teofanias”, isto é, manifestações da presença divina.As primeiras testemunhas desse acontecimento não são os ricos do seu tempo, mas os pobres pastores, gente simples , receptivos e sem idéias preconcebidas, que, como as mulheres do túmulo vazio, vivem à margem da sociedade. Lá no alto estão os reis Magos, que representam o mundo pagão e que sublinham, com sua presença, a universalidade da salvação trazida pelo Menino. Sacerdotes persas, talvez também astrólogos, esses Magos estavam convencidos da influência dos astros sobre o destino da humanidade. E é a estrela de Belém que os conduz até o Cristo – “ela é a estrela resplandecente da manhã “(Apocalipse 22,16). E Ele é o Criador dos astros, “luz verdadeira da luz verdadeira”. Um outro hino (Tropário) da liturgia bizantina ressalta a importância desse momento :”Aqueles que serviam os astros, aprenderam com uma estrela a Te adorar”. St° Ambrósio, Bispo de Milão (+ 397) também mostra que os Magos foram guiados pelo próprio Cristo : “Há dois caminhos : um conduz à morte, o outro conduz ao Reino. O primeiro é o do pecador que conduz a Herodes; o segundo é o do Cristo , pois por Ele retorna-se à pátria”.

A Teologia dos Ícones da Natividade quer mostrar que Deus se reveste da humanidade para iniciá-la no mistério do homem, mas desse homem agora cristificado, divinizado. Em outros termos, o Deus-Homem revela à pessoa sua vocação primeira e final de tornar-se homem-deus. Há um hino das Vésperas da liturgia bizantina que canta :”O céu e a terra se unem. Hoje Deus veio sobre a terra e o homem subiu ao céu “.

Sebastião Heber. Professor de Antropologia na Uneb, na Faculdade 2 de Julho, na Cairu. É membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris.

Obs: Imagem enviada pelo autor.

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