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Depois da Nigéria, o Brasil é o país que tem a mais numerosa população afro-descendente do mundo. É mais negro do que muitos países africanos. Entretanto, apesar da população do Quênia ser quase exclusivamente negra, as propagandas e publicidades de celular e de shoppings apresentam nas ruas e praças de Nairóbi, garotas branquíssimas, louras e de olhos azuis. No Brasil, também a população afro-descendente chega a ser quase 60% dos brasileiros, mas continua tendo menos acesso do que os brancos às universidades, aos trabalhos liberais e à plena participação na cidadania social. Basta lembrar que, nos últimos 30 anos, o Brasil registrou mais de dois milhões e meio de mortes por causas externas, sendo que 82% eram homens e destes mais de 60% negros ou afro-descendentes. Dados da ONU mostram que, na Bahia, onde mais de 80% da população é negra, são assassinados 21 jovens negros entre 15 e 18 anos para cada assassinato de um rapaz branco da mesma faixa etária.

Por tudo isso, são importantes as medidas para integrar e dar igual direito de cidadania social e política aos afro-descendentes. Entre elas, é importante a iniciativa de recordar que, no dia 20 de novembro de 1695, o exército colonial e os senhores de engenho da cana de açúcar de Pernambuco massacraram a comunidade do quilombo dos Palmares e assassinaram Zumbi, líder do quilombo. Há duas décadas, várias cidades brasileiras consagram o 20 de novembro como feriado municipal e todo o país celebra o dia consagrado à união e consciência negra. Toda esta semana é coroada com eventos sobre a imensa contribuição das raças negras na história e na construção das culturas formadoras do Brasil de hoje. Embora em nosso país, toda expressão de racismo seja considerada crime grave e imprescritível, ainda há muito por fazer para retirar da memória cultural dos brasileiros o preconceito e a discriminação racial, heranças da escravidão, abolida oficialmente, mas, na prática, mantida em relações de trabalho injustas e em uma estratificação social rígida e impiedosa.

O atual governo federal inovou ao criar a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Desde 2003, o Programa Brasil Quilombola (decreto 4.887/03) monitora e estimula, por meio de articulações setoriais e interinstitucionais, as ações governamentais para o desenvolvimento sustentável das comunidades remanescentes de Quilombos, assim como de outros segmentos minoritários da população ou comunidades tradicionais e de cultura originária. A Constituição de 1988 garantia o direito das comunidades negras e remanescentes de quilombos à posse de suas terras ancestrais e à manutenção de sua cultura própria. Entretanto, ainda faltam leis complementares para por em prática à Constituição e esta, quando não favorece à elite, é facilmente esquecida.

Hoje, no Brasil, conforme os cálculos do governo, existem cerca de 2.842 comunidades quilombolas. São verdadeiras repúblicas de homens e mulheres livres, formadas por descendentes de escravos fugidos do cativeiro e de alguns índios e brancos que decidiram viver solidariamente com eles. Estes quilombos espalham-se por quase todos os estados do país e são símbolos da resistência dos pequenos. Servem de modelos como comunidades verdadeiramente solidárias.

Em 2003, uma destas comunidades, no município de Itapecuru-mirim, no Maranhão, recebeu, pela primeira vez, a visita de uma representante do governo federal, a então ministra Matilde Ribeiro, chefe da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. No encontro dela com a comunidade, uma senhora negra pediu desculpas por não saber ler, nem falar em público, mas expressou sua alegria em ver uma mulher como ela e da mesma raça, ser ministra de Estado. Depois, teve coragem de pedir: “Ministra, por favor, fale para o Presidente da República que, aqui não tem luz, não tem água, nem casa decente para a gente morar. Fale para ele que a vida aqui é muito difícil e nós queremos ser donos das nossas terras. Fale que os nossos filhos não têm onde estudar e eu quero que meus filhos jovens continuem aqui, porque, aqui, eles têm segurança. Se eles forem para a cidade grande, vão perder o que aprenderam de bom aqui. A senhora vai falar para ele, não vai?” (publicação do programa Brasil Quilombola, Brasília, 2005, p. 4).

Este retrato falado de tantas comunidades e grupos tradicionais precisa ser transformado. Todos os brasileiros temos responsabilidade social, junto com o governo, de trabalharmos por um país mais igualitário e justo. A manutenção das religiões ancestrais e de expressões culturais negras, mantidas vivas de geração em geração, têm sido instrumentos importantes para a unidade dessas comunidades e para garantir uma mais profunda consciência da dignidade dos seus membros.

Para os cristãos, um valor central que a Bíblia aponta é a consciência da cidadania de todos os seres humanos, como filhos e filhas de Deus e cidadãos do seu reino. Esta revelação divina pode ser encontrada, como valor intuído e praticado nas comunidades afro-descendentes. É um valor necessário a toda sociedade brasileira. Que este aniversário do martírio do Zumbi confirme e reavive em todos nós este caminho de comunhão e partilha!

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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