10 de novembro de 2009
O tradicional Dia de Finados é celebrado por todos,independente de credo religioso , apesar de ter sido uma comemoração originada na França,num mosteiro medieval católico, Cliny e ter se espalhado como celebração universal. A morte pede respeito e reverência de todos, crentes e descrentes, por motivos os mais variados :crença na eternidade ou medo do além.
A bíblia já no seu primeiro livro, o Gênesis, lembra o mistério de finitude de toda criatura humana: “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar”.A perspectiva sapiencial focalizará esse tema como central:”Que o homem saiba, que a morte não tarda( …). Toda a carne fenece”(Eclo.14,12 e 18).
A literatura clássica é enriquecida sobre o tema com a obra de Sêneca( 4 a.C ? – 65 d.C), que dá origem ao título desse artigo. Essa é a obra mais conhecida do filósofo e um dos textos mais difundidos da Antiguidade Latina. Diderot chega mesmo a dizer que “ este tratado é lindo e recomendo sua leitura a todos os homens”. Recebi esse livro como presente do amigo Dr. Eduardo Lessa, da Procuradoria Jurídica da Uneb.No oferecimento ele diz :”Conquanto de formação estóica, o pensamento de Sêneca neste ‘pequeno-grande ‘ livro, traz elementos importantes para o sentido da vida e do tempo na concepção cristã”.É importante salientar que um autor “pagão” traz preocupações que parecem se aproximar do gênero sapiencial do antigo testamento.
Dentro do quadro da expansão romana, nasceu Sêneca em Córdova, na Espanha, filho de Anneo Sêneca, chamado de “O Velho” e que, como retórico, escreveu “Declamações”. O filho estudou em Roma e como advogado, rápido ascendeu politicamente, tendo sido membro do Senado Romano. Logo o Imperador Calígula tomou-se de inveja pela sua notoriedade. Mas ele foi “salvo pelo gongo”, pois, antes de ser destruído pelo Imperador,esse vem a falecer. Mas sua paz pessoal e social durou pouco, pois foi acusado de adultério com a sobrinha do novo Imperador Cláudio Cesar Germânico. No exílio na Córsega, aproveitou, entre privações, para escrever “Consolationes” onde expõe os ideais estóicos clássicos da renúncia aos bens materiais. A segunda esposa do Imperador, Agripina, ( a primeira fora condenada à morte), chama-o para ser preceptor do seu filho, o famoso Nero. Quando este se torna Imperador, Sêneca torna-se seu principal conselheiro, tentando orientá-lo para uma política de justiça e de humanidade . Mas logo a história vai registrar que ele não obterá sucesso. O próprio Sêneca se vê compelido a adotar uma política de complacência com ele chegando a redigir uma carta ao Senado justificando a execução da mãe do Imperador, Agripina, ordenada pelo próprio filho.
Ele se destacou por sua ironia, instrumento usado com muita maestria por ele, principalmente nas tragédias , consideradas as únicas do gênero na literatura da antiga Roma. A vida do autor teve momentos de glória e baixas, das mais profundas, sendo até exilado e tendo sido obrigado a se suicidar pelo próprio Imperador.
Ele se destaca pelo gênero epistolar, sobretudo as cartas dirigidas a Paulino. São as “Cartas Morais”. O gênero “diálogos”, muito usado na Antiguidade greco-latina (Diálogos de Platão), estendeu-se nos séculos seguintes, a ponto do Papa Gregório Magno, no final do século VI, ainda escrever os seus famosos “Diálogos”. A figura com quem se dialoga geralmente era fictícia. Tanto que no caso de Sêneca, não há comprovação da existência do seu interlocutor. Ele inicia lembrando a Paulino “que a maior parte dos mortais lamenta a maldade da Natureza porque já nasce com a perspectiva de uma curta existência”. Mas sua fala é impregnada de uma sabedoria que poderia se aproximar do gênero bíblico sapiencial. O Eclesiástico (cap. 40, v.1),diz:“Ó morte,como tua lembrança é amarga”.Ele já vislumbra uma solução ao limite da vida dando uma perspectiva qualitativa: “A vida se bem empregada , é suficientemente longa (…). Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se não se respeita nenhum valor, sentimos que ela realmente se esvai”.Ao mesmo tempo, a cronologia da vida é relativizada em vista de uma dimensão mais lógica, com ênfase no valor:”Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele apenas existiu por muito tempo”.O Eclesiástico diz também que”na habitação dos mortos não se toma em consideração os anos de vida”. Há na mensagem de Sêneca uma atualidade dos problemas humanos parecendo até que ele fala para os nossos dias: “A insaciável ganância domina uns, alguns encharcam-se com vinho, outros por um irreprimido desejo de comerciar, são levados a explorar terras e mares na esperança de obter lucro. O desejo de guerrear tortura alguns e há aqueles que se sujeitam à ingrata adulação dos superiores (…). Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade. Compreenderás então que morreste cedo”.Ele adverte contra a corrida desvairada a que se entrega a maioria das pessoas, e que as leva a uma inútil agitação que só conduz ao esgotamento das forças físicas e espirituais. Seu estoicismo condena uma horizontalidade que marcava a sua sociedade e a de todos os tempos:”Coloco em primeiro lugar aqueles que nunca estão disponíveis para nada, senão para o vinho e os prazeres da carne”. Ao mesmo tempo, demonstra uma serenidade na perspectiva da morte :”Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que te admires, durante toda a vida, deve-se também aprender a morrer”.A inevitabilidade da morte é lançada, assumida, com clareza, até com uma certa frieza:”Uma vez lançada , a vida segue o seu curso e não o reverterá nem o interromperá(…). Por seu turno, a morte virá e a ela deverás te entregar, querendo ou não”.Essa palavra dele lembra a máxima de S. Bento na abordagem da morte aos seus filhos:”Ter diariamente a morte a surpreendê-lo”.
O auge da mensagem de Sêneca se resume na sua estóica maturidade diante da morte:”Por mais curta que seja a vida, é mais do que suficiente, de maneira que , ao chegar ao último dia, o homem sábio não hesitará em ir para a morte com tranqüilidade”.
Nesse Dia de Finados, ecoará em uníssono na liturgia cristã uma prece comum ao coração de todo mortal:”Descansem em paz”.
Sebastião Heber. Professor Adjunto da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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