Filomeno Andrade é, antes de tudo, motivo de orgulho para o itabaianense, verdadeiro manancial de fatos típicos, de respostas desnorteantes, dessas de ficar, de se passar adiante, de não se perder nunca, de exigir pesquisador para ir coletando uma por uma, a fim de não se perder nos meandros do esquecimento. Tão extraordinário em suas façanhas que Renato Mazze Lucas, na sua boa e produtiva passagem por Itabaiana, de sua figura tratou, num conto fabuloso, “Filomeno, Benjamin e o pano de bilhar”, reunindo, em um triângulo, as diferentes figuras de dois irmãos, Filomeno e Benjamin, e do filho mais velho do primeiro, Elias. Mas, venhamos e convenhamos, Renato Lucas não era só um contista, aproveitando casos vividos no interior, para escrever seus contos. Era médico, e, ainda mais, psiquiatra, o que lhe permitia ir além da imagem física do personagem, descendo e se imiscuindo pelo seu lado espiritual.

Na sua observação, Filomeno era “um gordo calmo, de ventre distendido pela pressão interna, sem essas banhas frouxas que tiram a beleza dos gordos. Tão calmo que a lei das compensações lhe deu por companheira uma mulher esporreteada, com o giroscópio mental desregulado, como o dos foguetes americanos”. E, adiante: “Sua face redonda donde sobressaía um nariz pontudo, confundia-se com o tórax pela ausência visível do pescoço e era imutável ante qualquer ausência visível de pescoço e era imutável ante qualquer tipo de contrariedade, o que dava a sua fisionomia certa rigidez, não de uma, mas de duas máscaras de carnaval. Uma que não ria e outra que ria, pois não esqueçam que Filomeno é gordo”.

Lendo, certa vez, na Revista do Aracaju, um número bem antigo, me deparei com “Filomeno, Benjamin e o pano de bilhar”. Li, extasiado. Da Biblioteca Pública Dom José Tomaz, em Itabaiana, fui ao armazém de Filomeno, inocentemente, contar a novidade. Filomeno riu. Já conhecia o conto. Sua observação foi sintética: não foi assim que aconteceu. Essa observação, depois, no Baptistão, assistindo a uma partida do Itabaiana, na década de setenta, passei para Renato Mazze Lucas, que replicou, imediatamente: e ele queria que eu fizesse a reportagem?

Pois bem.

Um dos fatos mais típicos de Filomeno, narrado por Renato Mazze Lucas, focaliza Filomeno comendo um pão em plena Rua João Pessoa. Esclareça-se que, à época, década de cinqüenta, o comércio aracajuano fechava às portas ao meio dia para abrir às 13,30 horas ou 14 horas. O grande filósofo itabaianense, talvez sem querer ir até a um restaurante ou hotel, preferiu fazer de um pão o seu almoço, fato, aliás, que não era novidade em se tratando de um itabaianense. Não é sem motivo que, antes dele, outros conterrâneos, não filósofos, já comiam cebola, na passagem por Laranjeiras, a fim de economizar, segundo conta Carvalho Déda, em “Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano”.

Mas, deixemos Renato Mazze Lucas narrar:

“Poderia contar também que Filomeno certa vez foi encontrado na rua principal de Aracaju a uma da tarde, comendo um pão sem manteiga. Tinha vindo à Capital fazer compras para sua loja. O conterrâneo interpelou-o:

– Mas, Filomeno! Você comendo um pão colhudo, na rua João Pessoa?…

– Que é que você quer que eu faça, menino? Que alugue uma casa para comer este pão?”.

Os filósofos populares são iguais. A resposta de Filomeno, que nós, de Itabaiana, divulgamos, com tanto ardor, em meio a tantas outras (eu mesmo planejo editar o “Anedotário Histórico e Filosófico de Itabaiana”, incluindo mais de trinta passagens de Filomeno, entre outros filósofos da terrinha, e olhem que em Itabaiana quase todo mundo é filósofo), não ficou limitada só aquele momento. Mais tarde, cinqüenta anos depois, quando Brasília já estava consolidada como capital do país, um outro filósofo, do Rio Grande do Norte, que, com toda a certeza, nunca ouviu falar em Filomeno, e provavelmente, em Itabaiana, nem ninguém leu Renato Mazze Lucas, nem, muito menos, ouviu a resposta dada por Filomeno, ao ser flagrado comendo pão na Rua João Pessoa, em Aracaju, daria, mesmo assim, a mesma resposta, exatamente igual.

O fato me chega ao conhecimento na leitura que fiz do agradável “Pisa na fulô – Anedotário político e social de Macaíba e adjacências”, 2a. edição, revista e ampliada, de Valério Mesquita (s/local, Gráfica RN Econômico, junho de 2007, 117 pp) que o juiz federal Edílson da Silva Nobre Júnior, gentilmente, me ofertou.

No narrar de Valério Mesquita:

“Manoel Forte era um dos personagens preferidos. Alto, corpulento, vozeirão, seu “Mané” foi conhecer Brasília acompanhado do seu filho. Caminhando pelo Centro Comercial e revivendo o costume nordestino, comprou um enorme pão doce e saiu devorando-o normalmente pela calçada para indignação do filho: “Você quer que eu alugue aqui uma casa só para comer esse pão, é?”, vociferou Mané Forte, soltando pedaços de pão pela boca”.

Efetivamente, os filósofos são iguais, nas suas tiradas, ações e atitudes. Daí, um, sem conhecer o outro, em tempos tão diferentes e em ambiente tão longínquo, repetir o que o outro, décadas e décadas atrás, quando Brasília era apenas um projeto embutido na Constituição de 1946, pronunciou, sem esquecer de colocar na panela o fato de se cuidar de situações absolutamente idênticas, o que me faz lembrar, por fim, a figura de meu pai, sentado nas escadarias da Rodoviária Governador Luiz Garcia, à espera de ônibus para Itabaiana. Ao vê-lo, não me contive em expor, em forma de pergunta, o meu espanto ante o fato de ele estar ali, sentado, na escada, praticamente, no chão. A resposta, também, foi imediata: E eu vou me sentar aonde, se não tem banco vazio?

Não tenham dúvidas, os filósofos são iguais.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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