Djanira Silva 10 de novembro de 2009


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Abri os olhos. Por que estava ali no meu antigo quarto? Bonecas jogadas pelo chão, o retrato da menina com os cabelos presos num laço de cetim, o pequeno espelho de moldura dourada, os bichinhos de pelúcia pendurados por fitas elásticas, se emaranhavam num balanço frenético impulsionados pelo vento. Voltava, com a leveza do pássaro que voa numa visita ritual às flores.
No silêncio eu me procurava. Sentia-me no pensamento, no reboliço da idéia que se anunciava, espalhada pela face em sorrisos, insinuando-se em meus olhos de infância, no sorriso aceso da vida no espaço tranqüilo das lembranças.
Onde me fizera criança, fechei os olhos. Ao abri-los, vi a sala da antiga casa. O corredor escuro, sombrio recendendo a mistério. A imagem conhecida, marcando os espaços. Nascera da mente que ainda vivia.
O grande sofá estampado, as cadeiras de encosto alto, arrumadas ao redor da mesa montando guarda, disciplinando lembranças. Os retratos nas paredes: do avô, do bisavô, da avó sentada na preguiçosa cadeira de balanço. Do pai, da mãe, das crianças. Paisagens. A serra, o pombal, a cachoeira.
Já não sentia cansaço, apenas enfado. Quase senti saudade. Mas havia alguma coisa que me impedia de ser livre para voltar a sentir. Podia apenas ver, ainda.
Eu não andava, andavam as coisas, caminhava o tempo. Ao meu encontro vinham as imagens – o templo, o vestido branco, o buquê de miosótis, e Sorrisos-de-Maria, os cânticos, as vozes embutidas nas paredes da igreja, se espalhando com o incenso. Eu estava só. Onde estaria o homem, o escolhido? Partira sozinho. Para onde? Eu não sabia. Chorei. Queira o espaço onde ele estivesse. A dor me digeriu me transformou em coisa. Coisa que esperava a partida. Para onde? Eu me perguntava a cada hora.
A porta da igreja fechou num ruído macio em portais de veludo. A fé e a esperança, me tornavam feliz na brancura do vestido. Alí, eu me fizera mulher.
Parti. Precisava de respostas.
Abri a porta. Entrei. Sobre a cama alguém dormia. Entrara comigo na igreja. Recebera-me no altar.
Deitado, braços estendidos me acolheu. Fechei os olhos. Mergulhei em águas tépidas, aquecida em chamas, me envolvi em odores sensuais trilhei caminhos sem fim. Ali, eu me fizera amante.
Uma seqüencia de portas me entregava o mundo. Abertas, fechadas, preservando segredos. Risos de criança, barulhos alegres, gritos, carinhos de mãos pequeninas que me tornavam gigante, poderosa, inatingível, ali me fiz mãe. Conheci o amor a dor, o prazer, a tristeza, as alegrias os temores, medos vários que assediam sempre o coração das mães. Ali eu soube que ainda não podia partir.
Homens, mulheres me cercavam dando vida e movimento à casa. Fora possuída e possuía.
A hereditariedade da morte de mãos dadas com a vida, esperando nas esquinas, aguardando nos caminhos, na surpresa. Assim ela te levou. O esquecimento, a morte, o envelhecimento, a dor. A outra face da inutilidade de um corpo descartável.
Mergulho em esquecimento antigos. Momentos que me entregaram à vida – no ventre, no peito, no quarto, na cama. Imagens nascidas quando nem me perguntaram se eu queria a vida.
A face serena refletia a minha.
Flutuamos no espaço.
Chovia. Os pingos sobre um pedaço de zinco, liberavam um som constante. Por que eu ainda me irritava com as coisas? Pensava que nada mais deveria me atingir, como a ti já não alcançavam mais. Continuava presa a algum lugar. Esta sensação não mais deveria me pertencer. Sabia-te a salvo de tudo. Por que então me chamavas? Por que?
Vinhas em minha direção. Nossas mãos se tocaram. Minha força era tua força. Absorveste minha essência.
A cama, o quarto, as sombras, a chuva. O prazer se fez de nós. De uma só energia.
Sabias meus pensamentos, meus desejos, mas não podias me deter. A alma presa, precisava saber.
Precisava voltar. Para estar contigo era preciso a certeza. Sem ela eu não poderia ficar.
Teus olhos me mostraram o caminho. Cheguei lá.
O quarto iluminado. Sobre a cama o corpo inerte. Muito pálida, muito branca. Vozes me chamavam, repetiam meu nome, assustadas, ansiosas. Aquela, sobre a cama, não ouvia.
Teu rosto no espaço me sorria. Tua voz misturada aos ruídos da chuva, ao trinado dos pássaros, à claridade do sol, traçou um só caminho. Em ti, na eternidade, eu me tornei espírito.

Obs: Texto retirado do livro da autora – O Olho do Girassol –

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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