Vladimir Souza Carvalho 17 de novembro de 2009

 

Peregrino pelo Cemitério das Almas, de Itabaiana, em direção a sua sepultura, onde o seu retrato colorido, a refletir o rosto feliz da festa dos quinze anos – em que foi princesa, por uma noite – fixa os parâmetros da inevitável diferença entre a vida e a morte. Levo flores para marcar a passagem do trigésimo ano do seu nascimento. Helder me acompanha, silenciosos estamos, numa visita que se repete, sempre que possível, ao longo dos anos, a assinalar que seu desaparecimento foi apenas um fato físico, de lamentável ocorrência, como lastimoso foi tudo aquilo que contribuiu para a sua morte. Deletamos na mente os seus últimos meses, quando a queda se tornava maior e mais acelerada a proximidade do evento final e fatal. É confortante vê-la crescer, no período anterior ao pesadelo que, de repente, numa manhã de sábado, se abriu a sua frente, para, sem lhe dar trégua, depois de muita judiação, fechar seus olhos e tapar sua boca, o coração sendo o último que resistiu até deixar cair no chão a bandeira do que restava de vida.

Ah, Iana, quase dez anos depois daquele domingo de céu azul, que você não viu, e de sol forte, que você não sentiu, as fendas não conseguiram se fechar, e, aqui e ali, inopinadamente, alguma coisa brota no ar para lhe lembrar, não só a Iana, nos seus dias risonhos e anteriores, mas a sua ausência, que cada dia se torna mais eterna, misturada a uma saudade que, mesmo suavizada pelos dias idos, passados e vividos, machuca, na fixação da fraqueza do corpo humano, sujeito às turbulências das correntes e dos venenos, incapaz, muitas vezes, de resistir a vírus maléficos que se tornam maiores que a essência da vida.

Quanta coisa para lhe dizer temos, as mãos se equilibrando no seu túmulo, a visão presa ao seu retrato e ao riso que dele brota, em parelho com a luminosidade de seus olhos, mas calados estamos e silenciosos ficamos, como se estivéssemos ante a um altar sumamente sagrado, no qual nada se precisa falar, porque é o silêncio o reflexo da frustração que nos atinge e nos faz menores do que já somos. Ou, como se fizéssemos silêncio para não lhe acordar desse sono que, em abril próximo, completa dez anos, sono que se prolonga no tempo, porque assim estava escrito e assim será, vivos nascendo e caminhando em direção a morte, única realidade concreta, que a ninguém é dado o privilégio de evitá-la, morte que, mais cedo ou mais tarde, iguala a todos no abafado espaço de um túmulo.

O tempo, infelizmente, não apagou a luta incessante de revelações médicas que nos chocaram, de ressonâncias e tomografias que se seguiram, de consultórios e de médicos em diversas especialidades, de hospitais e de cirurgias, de esperanças que se tornaram mortas e de pesadelos que tomaram o lugar da tranquilidade coeva, na luta incessante para debelar o mal que crescia, abafando a verdade para que não chegasse ao seu conhecer, a fim de evitar que o peso de tudo, que era volumoso, caísse compacto sobre seus ombros de criança.

Hoje, na passagem do seu trigésimo aniversário de nascimento, na lembrança do difícil e longo trabalho de parto daquele 7 de novembro de 1979, na Maternidade São José, em Itabaiana, repassando na balança dos tempos o lado bom de sua trajetória, sobressai, como o passado que não quer ser sepultado, a fragilidade de quem já nasceu marcada para um destino trágico, lutando contra um inimigo que desconheceu até o último momento, sem saber aquilatar a monstruosidade algoz do que lhe acometia, saindo da vida para poder derrotar o que derrotado lhe tinha, despojando-se dos tubos e da UTI, para, livre dos aparelhos que lhe amordaçavam a boca, poder sair de uma esfera para outra, a fim de se tornar mais um anjo do Senhor, purificada de qualquer pecado pela bandeira do sofrimento que esbaldou durante mais de dez dos seus vinte anos.

Saudade é pouco, Iana, o termo é insuficiente para concentrar tudo que, na cabeça dos que ficaram, restou. Saudade se faz de sete letras e a que ficou de você se escreve com todas os alfabetos conhecidos e desconhecidos, de letras e de símbolos, por misturar esperanças mortas a perdas reiteradas e a sonhos desfeitos, numa salada ponteaguda e tenebrosa, que tivemos de engolir para poder conduzi-la a última morada, onde descansa e há de descansar sempre, liberta da dor e da invalidez, a dispensar as pernas e a participação dos braços, porque no céu os anjos voam.

Hoje, Iana, você é um ponto de saudade, maior do que podia imaginar. É uma rua, ainda sem placa, mas se enchendo de casas, onde, em breve, crianças correrão por suas calçadas, rua que se encherá de árvores para que, em seus galhos, os pássaros possam pular e cantar, rua que há de aparecer no endereço consignado nas cartas e nos catálogos telefônicos, nos telefonemas para os programas de rádio, rua que enfrentará o futuro na busca de calçamento, tudo na terra que serviu de palco para o seu nascimento, abrindo, depois, compulsoriamente, espaço em suas entranhas para abrigar o que do seu corpo restou, porque outra função não lhe restava fazer, senão a de proteger, no abraço do túmulo, para toda a eternidade, a jovem filha de vinte anos que sucumbia aos golpes da morte prematura.

Repito, aqui, Iana, o poema que fiz quando seu corpo já não tinha vida, que inseri no santinho distribuído nas missas de sétimo dia pela sua alma: Quando a noite, com o farrapo preto/ vedou seus olhos, / você já não viu/ a grande fogueira apagada/ que em nós se diluía,/ nem percebeu o quanto segurávamos o tempo/ para o que amanhã não surgisse. / Em seus vinte anos, / você era uma pena frágil,/ que o vento perverso carregava,/ enquanto nós,/ inúteis e impotentes/, a tudo assistíamos,/ com a rosa de esperança/ esfarelada no peito.

(*) [email protected]

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]