O Recife passou um segundo semestre de festa.. Isso tudo foi devido aos 80 anos de Francisco Brennand, considerado pela imprensa local como um “Gigante das Artes Plásticas”. Ele, que vive recluso na sua Oficina, não vê motivo para comemorações. Porem, a grandiosidade de sua obra, que é já há algum tempo , algo de internacional, não permitiria que a data passasse em branco. Ele reúne vários atributos : é escultor, pintor, ceramista, desenhista e até tapeceiro. Eu próprio, tenho uma grande e bela tapeçaria com a figura de S. Sebastião, que me foi presenteado por sua filha e amiga minha, Maria Helena – o que caracteriza essa tapeçaria é que o santo está atado a uma árvore sem folhas e as setas são as folhas que estão voltadas para ele em forma de flecha. No seu ateliê encontram-se os monumentos mais altos, os murais mais extensos, e tudo isso revestido de uma consagração internacional e uma produção abundante , numerosa e onipresente no Recife. No antigo aeroporto havia um painel imenso, sinal das primeiras obras e bem diferente do estilo das últimas décadas. Por algum obscurantismo da administração daquele órgão, essa obra foi encoberta. Numa posterior restauração do prédio, a obra foi descoberta. E no prédio do novo aeroporto, a obra está em lugar de destaque, mostrando as origens do Brasil, com o encontro das três raças – alem da tônica da decoração do ambiente ser feita a partir de suas monumentais esculturas, sobretudo com seus pássaros hieráticos.
Seu nome completo é Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand e nasceu a 11 de junho de 1927, no próprio Recife. Seu pai fundara uma cerâmica, S. João da Várzea, já em 1917.Essa antiga fábrica de tijolos e telhas está nas antigas terras do engenho Santos Cosme e Damião, no histórico bairro da Várzea, e é cercada por remanescentes da Mata Atlântica e pelas águas do Rio Capibaribe. Essa parte coube ao artista como herança. Mas estava em ruínas. Em novembro de 1971, ele empreende um colossal projeto de esculturas em cerâmica que deveriam povoar os espaços internos e externos do ambiente.
A grande verdade da obra de Brennand é que ele escreve em cerâmica. Suas obras revelam sua genialidade e são um romanceiro épico. Sua tônica é eminentemente nordestina : alem de formas humanas, os cajus, frutos e aves da região , povoam a sua obra.
Esse lugar é único no mundo. A Oficina Brennand constitui-se num conjunto arquitetônico monumental de grande originalidade, em constante processo de mutação. Lá a obra se associa à arquitetura para dar forma a um universo abissal, dionisíaco, muitas vezes sensual e ao mesmo tempo religioso e místico.
O universo do artista é eminentemente particular e sui generis. Ele não se deixa contaminar com tendências pontuais de época ou estilos específicos, mas se mantém sempre em reinvenção. Por isso é que vive como um ermitão no meio de suas obras – na sua “fábrica”, ele tem um pequeno apartamento onde trabalha suas criações nas horas mais inusitadas, isto é, muitas vezes, troca o dia pela noite.
Ariano Suassuna ( que também completou 80 anos) diz que ele “absolutamente não se preocupa em verificar se o que está fazendo no momento está em conformidade com o seu tempo”. O famoso escritor do Auto da Compadecida, nasceu na mesma semana que o artista ( mas em Taperoá, Paraíba), estudou no mesmo colégio, e costuma dizer que descobriu com o colega o significado de ser artista plástico :”Nós nordestinos, nos preocupamos em ser fiéis à terra, aos mitos, às histórias, às formas e cores da região. E como Brennand, ao mesmo tempo, absorve, naturalmente tudo aquilo que o rodeia, o resultado é que sua obra é a mais universal e a mais fiel à terra de tantas que já saíram do Nordeste”. Para o poeta Ferreira Gullar, prefaciando o seu livro “Brennand desenhos”, ele “não é apenas um artista plástico de presença marcante na arte brasileira; é também uma personalidade complexa e rica, em que se juntam, alem do amplo conhecimento da arte e da literatura, a rara capacidade de refletir sobre questões mais diversas, tanto estéticas, quanto humanas”.
Na obra de Brennand estão presentes referências literárias e mitológicas que se torna impossível definir a lógica que ele usa para reunir todas em uma mesma poética coerente. Seus desenhos, desde 1949, estão conservados na Accademia, inaugurada para imortalizar sua obra.
Na visão de Emanoel Araújo, Brennand, ao esculpir, “aproxima-se da criação divina no Gênesis”.De fato, sua obra é marcada por uma tônica de fertilidade, símbolos e mitos, que reaproxima os apreciadores de sua obra da criação primeira.No centro do seu templo, protegido por uma cúpula de vidro, há um ovo, que o artista chama de “ôvo primordial e cósmico”. O ôvo é um sinal de eternidade, o objeto primordial no qual todos os objetos e formas podem caber, é ,assim, a origem de tudo.Assim, a vida que brota do livro que trata da Criação, associado à vitalidade que emana dos trópicos, é marca registrada da obra desse octogenário que renasce em cada nova obra que executa. História, símbolos, mitologia, fertilidade e sintonia religiosa são as palavras –chave que marcam a obra desse gigante das artes. Vale a pena visitar seu santuário e respirar o ar de eternidade que exala daquele ambiente.
Sebastião Heber. Prof. adjunto da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris