Na memória das Igrejas, os últimos dias de outubro ficaram registrados como o aniversário da reforma protestante de Martinho Lutero, a quem, em 1985, o papa João Paulo II, chamou de “mestre comum da fé cristã”. Nestes anos recentes, esta data representa esforços comuns entre as Igrejas que, juntas, emitem declarações teológicas e pastorais que significam passos de reconciliação e unidade. Há dez anos, a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial emitiram juntas a Declaração de que têm a mesma fé no fato da Justificação pela Graça de Deus, um dos pontos que parecia ter ocasionado a divisão em 1517. Outras declarações e documentos comuns têm sido preparados. Nestes últimos dias, ao contrário, o Vaticano anunciou uma “abertura” para padres da Comunhão Anglicana que queiram passar à Igreja Católica. Eles têm reconhecido o seu ministério sacerdotal e podem continuar casados como padres católicos. Evidentemente, esta notícia atinge de modo mais profundo o setor dos padres anglicanos insatisfeitos com a sua Igreja, especialmente, os que não aceitam o sacerdócio das mulheres, nem se abrem a outras discussões atuais que ocorrem na Igreja. Tomara que esta postura pouco ecumênica do Vaticano com outra Igreja cristã não inche o clero católico com um número cada vez maior de ministros conservadores e insensíveis aos desafios do século XXI, aos quais as Igrejas cristãs deveriam responder.

Recentemente, o papa Bento XVI retirou a excomunhão de bispos e padres tradicionalistas que seguiram o cisma do arcebispo Lefebvre e foram excluídos da comunhão católica pelo papa João Paulo II. Apesar de polêmico, este gesto do atual pontífice revelou que mesmo a decisão de um papa pode, em poucos anos, ser revista e anulada pelo papa seguinte. Até hoje, os tradicionalistas que romperam com a Igreja Católica por causa do Concílio Vaticano II não mudaram seus pontos de vista, nem superaram nenhuma das atitudes anteriores. Então, quem mudou foi o papa. Foi Bento XVI que tomou a atitude de mostrar que nada é imutável e o papa anterior não foi correto em excomungá-los. De fato, o papa pareceu concordar com os mais progressistas sobre o fato de que não se resolvem conflitos internos em nenhuma Igreja com condenações e excomunhões. Ou pelo menos, ninguém será excomungado por ser de extrema direita.

Seja como for, as Igrejas têm mesmo de conviver com a diferença e o dissenso entre seus membros. Só assim, poderão cumprir um papel específico na construção de um mundo melhor para todos. Outro dia, um amigo me lembrou de que a rainha da Inglaterra é anglicana e tem a função de “cabeça da Igreja da Inglaterra”. Mas, na realidade, o seu império ainda tem vários reinos. Um deles é a Escócia, reino que passou ao domínio da Inglaterra, em razão de fatores históricos e guerras do passado. Só que a Escócia é presbiteriana, convertida por John Knox, que foi auxiliar do reformador Calvino, em Genebra. Então, este fato gera uma situação insólita. A rainha também foi proclamada cabeça simbólica da Igreja na Escócia. Por isso, todas as vezes que atravessa a fronteira da Inglaterra para a Escócia, automaticamente, a rainha Elizabete II deixa de ser anglicana e se torna presbiteriana. Mudam os hinos, mudam as orações, mudam os ritos. Existe mesmo uma teologia diferente, própria de cada Igreja. Entretanto, politicamente, esse não é o problema maior. Todos sabem que os calvinistas são republicanos (até hoje, Genebra se chama oficialmente República de Genebra). Portanto, na Escócia, sua majestade, a rainha se torna líder de uma igreja republicana. E socialista! A Escócia é maciçamente um país trabalhista, designação do socialismo britânico.

Contradições políticas e culturais como estas existem, de um modo ou de outro, em todas as Igrejas. Lutero insistiu que a vocação da Igreja é reformar-se sem cessar. Uma dessas conversões atuais que a realidade atual pede das Igrejas e das religiões é aceitar o pluralismo cultural e religioso, vigente no mundo, não como mal inevitável, mas como riqueza suscitada pelo Espírito Divino. Todas as Igrejas contêm profundos valores, mas como tudo o que é humano, também apresentam seus pecados. A diversidade das culturas faz com que cada uma sempre possa aprender com as outras, assim como o Cristianismo é chamado a se enriquecer no diálogo com as outras religiões e com pessoas e grupos que não optam por nenhuma tradição religiosa. Hoje, um desafio para todas as Igrejas é abrir-se cultural e teologicamente para expressões da fé não necessariamente ocidentais e tradicionais.

Graças a Deus, o Brasil não é um país católico, evangélico, ou muçulmano. É um Estado leigo, com a missão de coordenar a convivência pluralista e respeitosa de todos os cidadãos, crentes das mais diversas tradições espirituais e outros que crêem na vida e na dignidade humana. Se as Igrejas aceitam conviver com a diversidade e mesmo com as divergências inevitáveis que surgem nas comunidades, elas poderão ouvir melhor o Espírito Divino que fala através das profecias e serão de forma mais profunda sinais de um mundo mais justo, fraterno e de paz.

(*) MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 35 livros publicados, dos quais o mais recente é “O Sabor da Festa que renasce” (Ed. Paulinas, 2009).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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