Há duas semanas, pela primeira vez, um ex-guerrilheiro, socialista convicto, quase foi o candidato vitorioso no primeiro turno das eleições presidenciais do Uruguai. Em Honduras, um presidente escolhido e aceito pela elite, por ser do partido conservador, mudou de posição. Por isso, teve de enfrentar um golpe militar, sem direito de defesa. Ainda foi acusado de desobedecer à Constituição e falsamente acusado de querer se reeleger. O que houve de novo em todos estes fatos, foi que, pela primeira vez, se comprovou uma verdadeira aliança de solidariedade entre os países do continente latino-americano e um forte e unânime um repúdio internacional a golpes militares. Em vários países, constituições novas deixam claro que a meta do Estado é gerir o bem estar, ou nas línguas indígenas, garantir o bom viver para todos. Não se trata só de produzir, mas de ver em que esta produção significa uma vida melhor para todo o povo. Alguma coisa de importante está mudando nos países latino-americanos.
Nestes dias, celebramos o 20º aniversário do dia 09 de novembro de 1989, quando os alemães destruíram simbolicamente o Muro de Berlim, além de outros símbolos que mantinham de pé a chamada “Cortina de Ferro”. Os programas sociais do secretário geral da União Soviética, Mikkail Gorbatchev, como a glasnost, transparência e a perestroika, reestruturação, não conseguiram mudar o seu próprio país, mas significaram um caminho novo para as experiências socialistas do mundo. A propaganda capitalista prometia que aquele 09 de novembro representava o enterro do Socialismo. Entretanto, com o fim do Muro de Berlim e a posterior queda dos regimes soviéticos, a humanidade estava derrubando não a possibilidade de um sistema político alternativo ao Capitalismo neoliberal, mas a associação entre Socialismo e totalitarismos ditatoriais que não respeitavam a liberdade das pessoas e privatizavam as relações afetivas e os sonhos humanos.
Daquela data em diante, outros muros foram erguidos. Na fronteira dos Estados Unidos com o México um muro eletrificado e com guardas bem armados impede os migrantes penetrarem na ilha de luxo do Tio Sam. Nos territórios ocupados por Israel, uma muralha imensa divide o país e discrimina mais ainda os palestinos desterrados de sua própria terra. Estes muros não foram erguidos por comunistas ou por regimes acusados de ditadura. São símbolos de um muro pior que a chamada “cortina de ferro”: muralhas de ouro, dólar ou euro que dividem cada vez mais o mundo em uma pequena elite cada vez mais rica e mais de um bilhão de pessoas, condenadas a sobreviver em condições infra-humanas.
Neste contexto, não há como não se alegrar quando constatamos que, por todo o continente latino-americano, o velho sistema dominador parece com os dias contados. O imperialismo norte-americano não consegue mais impor seus interesses econômicos e militares, como sempre fazia antes. O próprio colonialismo interno que joga brasileiros contra brasileiros e, no próprio país, cria uma elite rica insensível ao sofrimento dos irmãos empobrecidos, começa a perder terreno. Já em 1965, em uma carta enviada de Roma à equipe de seus colaboradores e secretárias, Dom Helder Câmara escrevia: “Quer queiramos ou não, por todo o continente, se fortalece uma caminhada para o socialismo. Quer aceitemos chamar de bolivarianismo ou não, parece um processo irreversível. Como cristãos, nele deveríamos nos inserir para dar nossa colaboração e não nos omitir em uma tarefa tão justa e urgente”.
Este novo processo de construção de um socialismo mais humano e latino-americano ainda está em fase inicial. Não está seguindo os modelos clássicos das revoluções anteriores consideradas como de natureza socialista. Não se tem firmado através de revoluções armadas, nem de lutas violentas. Seu instrumento fundamental tem sido a educação que conscientiza as pessoas como cidadãs e o seu voto nunca mais comprado ou obtido por interesses espúrios. Em vários países do continente, como Venezuela, Equador e Bolívia, os governos mais populares têm conquistado o poder pela força do voto do povo e têm sido confirmados por eleições limpas e democráticas. Eles refazem o ideal de Simon Bolívar, que no inicio do século XIX, libertou vários países do domínio espanhol e não pretendeu governar nenhum deles. Queria sim formar a grande pátria latino-americana que as nações andinas já chamavam de Abya Yala. Neste início do século XXI, pela primeira vez, os países latino-americanos começam a se unir e a se solidarizar. Em vários níveis, os países mantêm sua soberania nacional, mas constroem entre si alianças que apontam na direção de uma pátria comum. Uma plataforma importante tem sido rever e transformar as leis e constituições nacionais para que dêem pleno direito de cidadania à população indígena, negra e empobrecida que sempre foi mantida à margem da cidadania efetiva. O novo bolivarianismo está sendo construído a partir dos valores das culturas indígenas e autóctones do continente. A terra, a água e os bens naturais passam a ser considerados como sagradas fontes de vida e não mais como meras mercadorias a ser exploradas para o lucro das minorias abastadas. A vida de todos passa a ser considerada o bem supremo. Por isso, se pode dizer que este processo social manifesta o que, em outros termos, há anos, Dom Pedro Casaldáliga expressava: “Na América Latina, o Verbo Divino se faz índio, se faz povo”.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.