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X – “uma, duas, três…”

Tendo em mente o avançado das horas vespertinas, o sol já se preparava para dar lugar à lua, assim como minha vigília fazia em relação ao sono… Não era bem sono, mas cansaço e emoção. Tentei não mais demonstrar as fraquezas nobres da alma e, logo depois de confortante banho, farto lanche – ou merenda, como é o termo que lá mais frequentemente usam – e outra prosa mais delongada com a Sra. Fátima, fui descansar em uma rede na varanda. De lá, vi algumas aves apressadas com os efeitos do crepúsculo, umas nuvens que tinham formas de grandes personalidades sertanejas e, o que me fez vivenciar a situação inusitada a que antes me referi, as ovelhas caminhando no pasto… Ainda sem saber pelo o que passaria, apenas considerei a quantidade do gado ovelhum e conclui: muitas eram elas.

Sem bem saber precisar o número exato, todavia, comecei a estimar a quantidade. Ora, decidi que, apesar do sono e ainda da rede, por regozijo, lembrando-me do que, no propósito de dormir, fazia imaginativamente na infância: iria mentalmente contá-las… – “uma, duas, três…” – Fiquei contando as ovelhas…

XI – O Fato Inusitado

Após algum tempo, fui ter com os bichos no pasto. Notei, logo ao chegar lá, que elas, curiosamente, andam juntas, de forma que em vez de quereres individuais, parece ter uma só vontade todo o rebanho. Mais que isso, à medida que ia a reflexão se aprofundando, meu espanto aumentava e inúmeras assertivas, alheias às minhas intenções, formavam-se em minha mente. Elas, as proposições, gritavam: – “os homens são como as ovelhas! Eles vivem em grupo e igualmente vivem em grupo os bichos. Rebanhos há tanto de homens quanto de ovinos…” À frente de tal constatação me estabelecer o desatino ou o desvario, trouxe-me à imaginação inúmeras histórias e, com elas, um quesito: o que faz os autores escreverem sobre as tramas humanas e não sobre as de malhada? A questão me martelou o recheio de crânio por um par de minutos… Depois, considerei: ora, tal pergunta não é de todo absurda. Analisemos: ambos, homens e ovelhas, vivem nos sertões… Ambos nascem, sofrem, relacionam-se… Ovelhas, diferentemente de borboletas, andam em linha reta, como humanos, ou, pelo menos, referindo-se a Machado de Assis, como ordeiros militares…

Voltei, enfim, à mesma questão e, embora, a esta altura, ela já se me apresentasse legítima, sua resposta me era ainda estranha. Já ia, no surto do fracasso dos respondedores – muito triste e irreparável é tal fracasso –, considerar a pergunta irrespondível, quase uma aporia, quando me aconteceu o inesperado. A ovelha mais velha do rebanho, animal já estéril, uma badana, a mais sábia do grupo, olhou para mim e, com uma feição que era um misto do indecifrável com um quê da expressão de Münch, falou como se houvesse vislumbrado a questão que me cambaleava o cérebro. Tens aqui, com os votos da serenidade, as suas palavras: “Por que me ignoras autor? Sou digna das tuas verdades e mentiras. Escreve sobre este animal estéril! Dá-me uma história, uma sucessão, já que não posso ter filhos!” – Veio-me primeiro o susto, o sobressalto, o espanto… Daí, o medo, o receio, o pavor… Ovelhas falam! Mais que isso, pensam, concatenam ideias! Ovelhas parecem saber o que refletimos!

Em resumo, todas as exclamações confundiam-se com interrogações. Depois de alguns minutos, o espanto se foi diminuindo e, embora com os olhos ainda arregalados, comecei a pensar na pergunta. Comecei a refletir sobre ela. Assombrei a própria consciência com a falta de diferença entre homens e ovelhas. Como um parco defensor da humanidade, mas ainda em um antropoteísmo absoluto, endeusei-me a mim mesmo e ao ser humano. Por fim, com o agregado de vingança e contradição de todos os homens que agem como pseudodeuses, respondi à badana, à ovelha inquiridora: “Que animal insolente e ingrata! À frente de pedires para escrever sobre ti, devias agradecer-me por não fazê-lo. Ovelha, os escritores não escrevem sobre ti porque te consideram e também as demais ovelhas moralmente superiores aos humanos. Será que não vês?! Tu és bicho, concordo, mas és bicho de muita sinceridade! Tu não és dada à dissimulação…” – eis uma ideia de primeira ordem!

A ovelha não me pareceu satisfeita com a resposta, foi aí que continuei o argumento: – “Por não dissimulares, velha badana, é que os autores te abandonam – assim como aos teus – aos famigerados e agráficos vermes. Mais que isso, enquanto os vermes se sustentam da parte rubra do teu corpo, os escritores continuam com os astuciosos, fingidos, hipócritas e dissimulados bípedes, pois destes encontram o teatro na rua… Daqueles, tu, badana, e outras ovelhas, só há sinceridade… E, antes de achar o argumento um contra-senso, dize-me para que serve a lhaneza para teatristas e escritores? Se pensas, ovelha, que se faz literatura da lisura e da franqueza, digo-te, que não me cultives raiva: és ingênua. O fingimento da humanidade é o regozijo, o arroubamento, o júbilo dos escritores. E se tu preferes mais religiosidade e menos masculinidade nos substantivos, repisemos: a hipocrisia das pessoas é a aleluia dos autores.” – Senti-me tristíssimo. Havia, por força da honestidade, entendido por fim a mesquinhez humana… Continuei o que falava, mas, se é bem que me lembro, diminuí o timbre da voz.

“Não que sejam os autores, ou que desejem sê-lo, uns diascevastas de tão dissimulada peça de teatrelho, contudo são, de bom grado, atentos teatristas. Desta feita, como ignorar os apartes silenciosos dos inúmeros personagens da vida? Ora, os multicoloridos arlequins de cada esquina são como os olhos dos homens, revelam certa verdade aos que os entendem e calam-se no mutismo jocoso das bufonarias para os que, por imaturidade, só escutam o produto do nefasto misto de boca e língua. É no escopo desta concepção que escritores procuram histórias sobre dissimulados bípedes e desprezam-te e a tua sinceríssima espécie. Ademais, ilustríssima ovelha, informo-te que caso se sintam ofendidos os homens por serem conceituados enquanto simples bípedes, ou, caso tenham projeto de andar também com as mãos, mudo a nomenclatura, reformulo-a, transporto-os e também ao resto da humanidade à época dos verdadeiros esquilianos. Desta feita, onde tu, ovelha, escutaste ‘dissimulados bípedes’, escuta agora ‘dissimulados dramatis personæ da vida’, mas não me peças para alterar a adjetivação, pois de ausência de caracteres bipedais não se colige privação de dissimulação. Astúcia, fingimento, hipocrisia, são, ao que parece, o que há de inegociável no bicho humano.” – Foi meu desabafo final e, juntamente com isso, foi que promovi em todo o curso da vida o meu primeiro diálogo com um ovino… Que espanto inquietador!

Alheia à minha inquietação, contudo, a ovelha se calou – digo ainda –, quase chorou e olhou-me fixamente, com pena… Não que eu notasse lágrimas em seus olhos; notei apenas a ausência de um olhar corriqueiro; tinha naquele momento olhos profundos como as cacimbas secas e é aí que seres graves choram. Mas não tinha raiva, teve pena dos homens – de todos eles – e não mais quis fazer parte de suas histórias… Preferiu a anonimidade ao papel trágico, quiçá fosse uma boa escolha; não continuei o julgamento. O fato é que, quando menos esperava, quando o crepúsculo do fim de tardinha já havia ido e o lusco-fusco dera definitivamente lugar à noite, o bicho se foi como veio, de improviso, assim como vêm e se vão as boas ideias no meio da noite.

XII – Conclusão (ou Da Esperança)

Só bem sei que acordei pela manhã com o sol que esquentava a face e a rede onde lá eu estava. O Sr. Diógenes, com a alegria que lhe era peculiar, já me vinha sorrindo e dizendo que de tanto eu dormir, ele já pensava que eu tinha morrido. Era afeito às pândegas. Cumprimentei-o e, quando me dei conta das concatenações, ainda me lembrava, vagamente, da ideia de contar ovelhas… Daí, voltei a olhar para o pasto, elas estavam lá, tranquilas e felizes com seu comportamento de rebanho. Não pude identificar mais a velha badana nem fiz, naquele momento, mais analogias com os homens; a fome não dava lugar às reflexões. Entre fome e reflexão, o organismo não tem dúvidas: elege a primeira. Fui, pois, sem maiores elucubrações, ao café da manhã.

Enquanto me sentava à mesa, o Sr. Diógenes logo me perguntava se eu queria conhecer parte da Fazenda Morena a cavalo… “Sabes cavalgar, ó homem?” – Perguntou-me em tom de brincadeira, imprimindo um sotaque aportuguesado. “Como um Marquês de Marialva” – Respondi-lhe. O Sr. Diógenes, então, dirigindo-se a um vaqueiro que por lá se encontrava, mandou selar os cavalos. O cavalo no qual fiquei cavalgando chamava-se Caraça. A razão para tal nome, fiquei depois sabendo, ao animal não bem lhe era primeiramente atribuída, mas ao seu pai – equino de uma carantonha enorme –, que tinha em toda a extensão das orelhas ao focinho, uma mancha branca e uniforme, a qual, em oposição ao marrom avermelhado do resto do corpo, veementizava a brancura do semblante de bom animal. O filhote, contudo, deu bicho um pouco diferente no aspecto físico, mas manteve mesmo apelido e predisposição às cavalgadas.

“Caraça é dos melhores cavalos daqui. Passa logo do andar ao galope, poupando assim os vários inconvenientes do trote.” – Assegurou-me o Sr. Diógenes. De toda sorte, eis uma idiossincrasia do meu cavalo: era um animal de extremos. Voltamos ao café da manhã e, enquanto comia a boa – mas um pouco gordurosa – comida do sertão, pensava na história das ovelhas, mas dela nada falaria nem para o Sr. Diógenes nem para sua esposa durante o resto de minha estada, até o final daquela semana. Logo após, entre uma tapioca e outra, considerei que, passados os dias de férias, voltaria a Natal e, lá, encontraria uns velhos amigos quando, fatalmente, contaria toda a reflexão sobre a história. Logo então entendi que, ironicamente, quanto mais eu para eles falasse, voltar-se-me-ia mais e mais ao cérebro a ideia do sertão como contração de deserto, pois minha voz para os ouvintes humanos, diferentemente do que parecia ter acontecido com a ovelha, seria como vox clamantis in deserto – voz que clama no deserto, no vazio –; pensei então: o sertão não é o grande deserto físico, espacial, mas é o da constatação da vacuidade humana. O homem é o espaço vazio. O homem é o sertão.

Não que seja apenas, na essência, a maioria dos sertanejos desta estirpe, mas o é a maioria de toda a raça de homens, pois é na mente dos espécimens humanos que existe o grande deserto onde ecoam as vozes e, mesmo que lá possa se configurar uma nobre polifonia, o mutismo das frivolidades é que parece ser a regra. Devo, pois, ao sertão e ao misterioso episódio com as ovelhas – e a isto lhe sou grato de forma incomensurável –, a possibilidade do desentenebrecimento de tal ideia; e, juntamente com o sentido de seu nome, ofereço a grande e irônica homenagem à tragédia do projeto humano de tornar-se superior a tudo que é rebanho. Aqui jaz o veemente fracasso da humanidade ímpar, que há de olhar ao seu redor e gritar: ei-lo, inevitável, o homem-menos-que-ovelha. Mas, no grito, ao que parece, ainda resta alguma esperança… Foi quando meu pensamento foi interrompido pela voz do vaqueiro Adligeno, que disse: “é o que veremos!” O fato é que o ar risonho – mas nunca burlesco –, característico de canto de boca, do vaqueiro Adligeno, tirou-me do estado pensativo e parecia responder à minha súplica de muita fé e, principalmente, confiança.

Obs: A Parte III foi postada no dia 28.09.2009

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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