teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Quase não acreditei quando soube, por diversos amigos, que sua voz estava a ponto de calar-se. Internada em CTI, seu quadro se tornara irreversível e todos os que a amavam – família, fãs, amigos, admiradores – se encontravam em compasso de espera do anúncio de sua morte. Parecia impossível que aquela voz de “tierra adentro”, com a pureza e a força da terra mesma, pudesse ser silenciada por alguma força maior do que ela. Saída das entranhas da sofrida e invencível Tucumán, sem precisar de instrumentos para acompanhá-la, sua garganta era única e abençoada e, por isso, não parecia que pudesse algum dia calar-se.
E, no entanto assim foi. No dia 4 de outubro último, festa de São Francisco de Assis, o Poverello, o pobrezinho, irmão da terra e de toda a criação, Mercedes Sosa, a “negra” faleceu em Buenos Aires. Repousou inerte e aquela para quem cantar não era uma escolha, mas um destino, e que desde muito jovem entregou sua voz a serviço dos pobres e das causas humanitárias, teve suas cinzas espalhadas em terra argentina.
Cabelos negros como as noites da Pampa que tanto amou, longos como os dias de verão ao sul do Chuí, poncho longo sobre sua impressionante estatura, mãos engrossadas pelos batuques com os quais acariciava o bumbo ritmado que tocava enquanto emitia as notas certeiras, afinadas e cristalinas de seu canto, a “negra” Sosa era o próprio ícone da Pátria Grande, a América Latina que nossa geração um dia sonhou.
Quantos de nós, que vivemos intensamente os anos 1960, 1970, 1980, já não choramos ao ouvir, em sua voz, Canción con todos, Si se calla el cantor e tantas outras? Quem já não vibrou ao sentir derramadas como luz da manhã em seu coração as canções de Atahualpa Yupanqui falando de liberdade? Ou as inesquecíveis letras e melodias de Violeta Parra, sua irmã chilena de compromisso, de dor e de canto, Gracias a la vida, Volver a los 17?
Mercedes Sosa não se afastou nem por um momento dos ideais que nortearam sempre seu canto e sua carreira. Não pertenceu ao número daqueles que, quando a moda passa, mudam de casaca e de lado. Incorporou a sua luta pela justiça à causa da terra, da ecologia. Mas jamais deixou de cantar pela liberdade. E se em seus últimos tempos o amor cantava, era porque passara a acreditar que a libertação da sociedade passava também, e muito, pela libertação das pessoas. E que maior libertação do que a descoberta e o exercício do amor?
Assim como sua voz potente e aveludada percorria todos os tons e matizes, do profundo contralto ao soprano trinado, assim também seus parceiros cobrem um leque variado e qualificado: do patriarca Atahualpa Yupanqui a Chico Buarque de Holanda, da venerável Violeta Parra à nossa querida sambista Beth Carvalho, do genial catalão Joan Manuel Serrat ao argentino Fito Paez.
Com a morte de Mercedes Sosa sinto o mesmo que outras vezes quando morre alguém que dignifica a humanidade e marca positivamente esse pobre planeta em que vivemos. Sensação de empobrecimento, de perda, de vazio. Sentimento de que a vida vai ficando mais vazia, o planeta vai ficando mais pobre. E de que vamos tendo mais testemunhas do lado de lá do que do lado de cá.
Por isso as lágrimas nos olhos e o apelo sentido: continua cantando, “negra”! Não te cales, cantora, pois senão se calará a vida mesma. Pois a vida é todo um canto, como sempre disseste na canção que não para de ressoar em meus ouvidos. Mas, agora que te foste, teu canto tem que continuar em nós e por nós. Por isso, repito o estribilho de uma de tuas canções mais conhecidas e amadas: “Eu só peço a Deus/ que a dor não me seja indiferente/ que a seca morte não me encontre/ vazia e só sem haver feito o suficiente.”
Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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