Marcelo Barros 14 de outubro de 2009

Para ser justos com a realidade, este 12 de outubro de 2009 representa uma nova etapa na história do continente que os espanhóis chamaram de América e que para muitos habitantes originais destas terras é a Abya Yala, morada dos espíritos gentis das florestas e das montanhas.

De fato, mais de 500 anos depois do início da invasão européia e de uma colonização cruel para os povos que aqui habitavam, os descendentes destas comunidades se unem em confederações nacionais e continentais. Internacionalmente, estas organizações indígenas são reconhecidas como entidades, com direito à representação na ONU e, há poucos anos, viram elaborado um acordo internacional dos Estados sobre os direitos inalienáveis dos povos autóctones a suas línguas, culturas, religiões e organizações próprias. Em vários países, as populações votaram em constituições nacionais mais justas e democráticas e, desde então, vários índios foram eleitos para os congressos nacionais. Na Bolívia, pela primeira vez, as nações indígenas, maioria da população do país, têm um índio como presidente da República e podem ver respeitados seus direitos à posse da terra e à autonomia de suas culturas.

Em Quito, até esta sexta-feira, 16, representantes de nações indígenas de toda a Abya Yala se reúnem em um mutirão global para salvar o planeta Terra. É uma preparação para a Conferência internacional da ONU sobre as mudanças climáticas que, em dezembro próximo, ocorrerá em Compenhague. A conferência da ONU reunirá representantes dos Estados e especialistas da Ecologia, enquanto este encontro indígena envolve as comunidades índias e não índias de todo o continente, em um novo programa de cuidado com a terra, a água, o ar e todos os seres vivos. A conferência da ONU se baseará em protocolos diplomáticos e acordos entre os Estados. O encontro indígena de Quito tem como alicerce uma espiritualidade de amor ao planeta e a proposta de que todo o universo é sagrado como uma comunidade da vida a qual todos nós pertencemos. Esta sabedoria indígena, espalhada por todo o continente, tem sido um importante alicerce de um novo caminho de respeito ao ambiente e, ao mesmo tempo, tem fortalecido um processo social novo que se manifesta, pouco a pouco, aqui e ali no continente. A imprensa faz questão de contar a história dos países como se fosse protagonizado por líderes individuais como os presidentes Hugo Chávez, Evo Morales, Manuel Zelaya ou outros líderes que surgem a cada momento. Os índios nos ensinam a ler a história como um processo decidido comunitariamente e construído por grupos de base e de forma coletiva. As pessoas que exercem coordenação e têm liderança podem ser muito importantes e até desencadear etapas importantes do processo social, mas se sabem ouvir e respeitar os anseios e iniciativas das bases. Parece ser o que está acontecendo, agora, em vários países do continente.

Em 1789, o cientista e escritor Benjamin Franklin, então residente em Paris, escreveu diversas cartas à sua esposa e à família em Boston. Nas diversas correspondências, narrava os fatos que via acontecer na França. Em uma, ele escrevia: “Hoje, prenderam a Madame Pompadour”. Em outra, contava: “O povo invadiu o palácio do Louvre”. Ainda em outra, concluía: “Destruíram a prisão da Bastilha”. Mas, mesmo um cientista social inteligente e bem informado como Benjamin Franklin via cada fato que ocorria naquele momento da história de forma isolada. Não foi capaz de ligar os acontecimentos e ver que eram episódios de um processo maior que, posteriormente, se chamou de “revolução francesa”, acontecimento que, de certo modo, mudou o rumo do Ocidente. Hoje em dia, na América Latina, a imprensa critica o processo social novo que está acontecendo na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Mostra que o povo pobre de Honduras se arrisca nas ruas para protestar contra o golpe militar e apoiar o presidente Zelaya. No entanto, não parece perceber que estes eventos fazem parte do processo maior e irreversível de uma transformação social e política que abrange todo o continente.

Já em 1964, em uma de suas cartas circulares, Dom Helder Câmara, então novo arcebispo de Olinda e Recife, escrevia de Roma, durante o Concílio Vaticano II: “Em todo o continente latino-americano, está em curso um processo de mudanças sociais de natureza revolucionária. Quer se aceite ou não chamá-lo de “bolivarianismo”, é um processo justo e que os cristãos deveriam apoiar para que se garanta mais vida para todos e a violência da vingança não tenha vez”.

Nos evangelhos, Jesus usa a expressão “reino de Deus” para falar do projeto de justiça e amor que o Pai de bondade tem para o mundo. E ele diz que participam deste projeto, não necessariamente as pessoas religiosas que dizem “Senhor, Senhor”, mas as que, em suas vidas e por suas opções, realizam a vontade de Deus Pai. E conclui: “Buscai o reinado de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Cf. Mt 6, 33). É isso que, mesmo sem declinar sempre o nome de Deus, índios e empobrecidos de todo o continente, assim como seus aliados, estão fazendo neste aniversário do 12 de outubro, como dia de uma nova Abya Yala, ou terra de nações verdadeiramente livres e independentes.

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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