Para ser justos com a realidade, este 12 de outubro de 2009 representa uma nova etapa na história do continente que os espanhóis chamaram de América e que para muitos habitantes originais destas terras é a Abya Yala, morada dos espíritos gentis das florestas e das montanhas.
Em Quito, até esta sexta-feira, 16, representantes de nações indígenas de toda a Abya Yala se reúnem em um mutirão global para salvar o planeta Terra. É uma preparação para a Conferência internacional da ONU sobre as mudanças climáticas que, em dezembro próximo, ocorrerá em Compenhague. A conferência da ONU reunirá representantes dos Estados e especialistas da Ecologia, enquanto este encontro indígena envolve as comunidades índias e não índias de todo o continente, em um novo programa de cuidado com a terra, a água, o ar e todos os seres vivos. A conferência da ONU se baseará em protocolos diplomáticos e acordos entre os Estados. O encontro indígena de Quito tem como alicerce uma espiritualidade de amor ao planeta e a proposta de que todo o universo é sagrado como uma comunidade da vida a qual todos nós pertencemos. Esta sabedoria indígena, espalhada por todo o continente, tem sido um importante alicerce de um novo caminho de respeito ao ambiente e, ao mesmo tempo, tem fortalecido um processo social novo que se manifesta, pouco a pouco, aqui e ali no continente. A imprensa faz questão de contar a história dos países como se fosse protagonizado por líderes individuais como os presidentes Hugo Chávez, Evo Morales, Manuel Zelaya ou outros líderes que surgem a cada momento. Os índios nos ensinam a ler a história como um processo decidido comunitariamente e construído por grupos de base e de forma coletiva. As pessoas que exercem coordenação e têm liderança podem ser muito importantes e até desencadear etapas importantes do processo social, mas se sabem ouvir e respeitar os anseios e iniciativas das bases. Parece ser o que está acontecendo, agora, em vários países do continente.
Em 1789, o cientista e escritor Benjamin Franklin, então residente em Paris, escreveu diversas cartas à sua esposa e à família em Boston. Nas diversas correspondências, narrava os fatos que via acontecer na França. Em uma, ele escrevia: “Hoje, prenderam a Madame Pompadour”. Em outra, contava: “O povo invadiu o palácio do Louvre”. Ainda em outra, concluía: “Destruíram a prisão da Bastilha”. Mas, mesmo um cientista social inteligente e bem informado como Benjamin Franklin via cada fato que ocorria naquele momento da história de forma isolada. Não foi capaz de ligar os acontecimentos e ver que eram episódios de um processo maior que, posteriormente, se chamou de “revolução francesa”, acontecimento que, de certo modo, mudou o rumo do Ocidente. Hoje em dia, na América Latina, a imprensa critica o processo social novo que está acontecendo na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Mostra que o povo pobre de Honduras se arrisca nas ruas para protestar contra o golpe militar e apoiar o presidente Zelaya. No entanto, não parece perceber que estes eventos fazem parte do processo maior e irreversível de uma transformação social e política que abrange todo o continente.
Já em 1964, em uma de suas cartas circulares, Dom Helder Câmara, então novo arcebispo de Olinda e Recife, escrevia de Roma, durante o Concílio Vaticano II: “Em todo o continente latino-americano, está em curso um processo de mudanças sociais de natureza revolucionária. Quer se aceite ou não chamá-lo de “bolivarianismo”, é um processo justo e que os cristãos deveriam apoiar para que se garanta mais vida para todos e a violência da vingança não tenha vez”.
Nos evangelhos, Jesus usa a expressão “reino de Deus” para falar do projeto de justiça e amor que o Pai de bondade tem para o mundo. E ele diz que participam deste projeto, não necessariamente as pessoas religiosas que dizem “Senhor, Senhor”, mas as que, em suas vidas e por suas opções, realizam a vontade de Deus Pai. E conclui: “Buscai o reinado de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Cf. Mt 6, 33). É isso que, mesmo sem declinar sempre o nome de Deus, índios e empobrecidos de todo o continente, assim como seus aliados, estão fazendo neste aniversário do 12 de outubro, como dia de uma nova Abya Yala, ou terra de nações verdadeiramente livres e independentes.