Não sei em que a aluna se baseou para escrever, de giz, no quadro negro, o esquema que o professor ordenara. Sei que metade da aula foi gasta nessa tarefa – porque a outra metade inicial já era utilizada para a chamada dos alunos. Senhor doutor fulano de tal. E aí o aluno se levantava, ia até a mesa do mestre, assinava a lista, o que se repetia, religiosamente, em todas as duas aulas semanais. Recordo-me que, no final, o esquema no quadro, um aluno, com todos os protocolos cerimoniosos devidos, perguntou ao mestre se tal palavra (qual teria sido?) era escrita com s ou com x. O professor respondeu com outra pergunta: por quê? O aluno mostrou que, no quadro, estava com x. O mestre olhou e nada falou. Retirou-se da sala, do mesmo jeito que entrava, com toda a liturgia que se fazia presente em cada gesto. No dia seguinte, mandou a mesma aluna ao quadro repetir o esquema. No momento do termo em foco, o professor sentenciou: Agora, a senhora doutora já sabe: tal palavra se escreve com s. A aula também estava encerrada.

O nome do professor? Aliás, professor só não. O título era grande e pomposo: Professor Monsenhor Doutor Alberto Bragança de Azevedo, senão ele não respondia a nenhuma pergunta, nem abria a boca. Tinha de ser chamado por inteiro. Se faltasse o Azevedo, a sua resposta era uma só: tive pai. Não adiantava o aluno insistir que o mestre não dava a mínima, na distância que mantinha não só do aluno, mas de qualquer pessoa, no silêncio sacramental que conseguia impor, em qualquer momento, independentemente do lugar e das condições do tempo. A cara amarrada fazia com que a estudantada, respeitosa, se mantivesse a distância, sem condições para criar uma brincadeira na aula ou uma mera intervenção, que ninguém, absolutamente ninguém, ousava. Silencioso, dele não saia opiniões. Dizem – acerca dele há um longo repertório de fatos – que certa vez, um caixa de banco teria lhe perguntado o que achava do filósofo inglês Bertrand Russel, pronunciando errado o nome final. A resposta foi a de, secamente, corrigir a pronúncia. É o que comentavam, os poucos que tinham alguma aproximação.

Foi de fato um tipo à parte. Não diria esquisito. Diferente, é o termo mais exato. Deve ter sido o último sacerdote a usar, além da botina, uma capa preta, aliás, bonita, e um chapéu que só se vê em filmes focalizando cenas de sacerdotes caminhando no Vaticano. Ele usava, permanentemente, mantendo-se fiel, dia a dia, a todos os gestos repetitivos, como entrar na sala de aula pela porta do oitão, dirigir-se ao canto da sala para colocar seu guarda-chuva, ir até a mesa onde se despojava da capa, que era dobrada lentamente e colocada em cima da mesa, tirar o óculos que portava, guardando-o em uma caixa, para usar outro, retirado de algum bolso da batina ou da camisa, com a mesma lentidão e solenidade. Depois, sentado, iniciava a chamada, a cara de nojo quando olhava para o aluno, para dar início a chamada. Alberto Carvalho, especialista também em cinema, me disse, uma vez, que nem no cinema italiano viu uma cara de nojo igual a que fazia, permanentemente, o Professor Monsenhor Doutor Alberto Bragança de Azevedo, sobretudo quando revelava que há dezenove anos vinha aprovando analfabetos, porque jurara a sua sacrossanta mãe que nunca haveria de reprovar qualquer aluno. Deve ter cumprido a palavra, porque nenhum aluno, por mais deficiente que fosse, conseguiu obter a façanha de ficar reprovado em Direito Romano.

De sua aula é o que ficou: a serenidade dos gestos repetidos, a calma de não se abalar com nada, nem mesmo com uma bomba que soltaram em a sala, um dia, barulho que não lhe chamou à atenção alguma, tudo exatamente igual ao que fazia na aula anterior, como se fosse um repeteco, na solenidade que impingia a cada gesto. No mais, a crítica aos advogados que não sabiam escrever a palavra reivindicação e o expor a matéria de maneira que nada se entendia, pela falta de clareza didática, a ponto de me levar a pensar, ao lado de outras matérias que enfrentava no primeiro e que teria de superar para poder atingir o segundo ano, se não tinha quebrado a cara ao escolher o curso de direito, pela dificuldade de entender as exposições feitas pelos professores, circunstância que não me ocorria nos tempos do clássico do Colégio Estadual de Sergipe.

Morava no Hotel Palace. Tinha motorista de táxi, de sua confiança, que o conduzia a Faculdade de Direito. Um dia, o motorista não pode ir e escalou outro, avisando-lhe previamente, é claro. O substituto, ao vê-lo dentro do veículo, sem ter idéia da personalidade do estranho passageiro, teria perguntado: Para onde nóis vai, doutor? Santa ofensa à última flor de Lácio, inculta e bela! O Professor Monsenhor Doutor Alberto Bragança de Azevedo, cioso do idioma que tanto prezava, levantou-se, e, ao retirar-se do carro, respondeu: Nós íamos.

Os estudantes de hoje e os que entraram na Faculdade de Direito depois de sua aposentadoria compulsória, ao tomarem conhecimento do estilo do Professor Monsenhor Doutor Alberto Bragança de Azevedo, podem pensar que se trata de ficção, de um Conselheiro Acácio em outra dimensão e continente, como muitos pensam que os dribles de Garrincha são frutos de montagens feitas em computador. Mas, paciência, tudo é verdade. Eu vi. Fui seu aluno de Direito Romano e posso testemunhar, como, ainda, vi o outro jogando, embora já em total declínio físico.

O Professor Monsenhor Doutor Alberto Bragança de Azevedo foi um mestre diferente, de estilo próprio, feito por um tipo de barro, que não mais existe, conseguindo a graça, que não é concedida a todos os demais mestres, de ser lembrado, tantas e tantas décadas depois de aposentado, morto e sepultado na solidão de uma igreja em Laranjeiras.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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