Saulo Marden 7 de outubro de 2009

Com um ano e cinco meses, quando ainda se comunicava por palavras soltas: índio, dato, vê, au au, tudo, quer, aqui, mami, papi, vô, avó, caco, recebeu a visita dos avós. Não fora a única, mas aquela marcou pelo comportamento astucioso. Os outros encontros e brincadeiras ocorriam, quase sempre, fora do seu habitat.

Naquela noite agiu diferente. Estava em casa, no seu próprio domínio, e queria mostrar seu universo, bem diferente do que estava acostumado com os avós: “o cachorro, o gatinho, escutar … os passarinhos, pedir a benção a São Francisco, passear na pracinha, mexer nos armários do avô, brincar de esconde-esconde atrás das portas…. Essas e outras, faziam parte do mundo encantado que era a casa dos avós, cheio de descobertas, fascinação pelo desconhecido, e da alegria do contacto físico com as coisas mágicas que encantam e ampliam os horizontes, carregam o seu pequeno cérebro de informações:
“Preciso mostrar a eles que também tenho o meu mundo”.
Acredito que tenha pensado assim pelo seu comportamento naquela noite. Uma visita inesquecível. Mostrava que tinha aprendido depressa as lições, não somente dos pais, também dos avós.
Logo que chegaram, levantou os braços para os receber. Beijos nas gorduchas bochechas eram repetidos sem que reclamasse. Agradecia com risos, mas articulava alguma coisa, pois logo quis sair do braço. Desceu e saiu correndo em disparada por dentro de casa até chegar a varanda do apartamento.
“Vovô vê au, au.” A noite toda foi para apresentar o seu mundo: abria armários, tirava CDs. Sempre com um olhar expressivo e palavras soltas saia mostrando tudo. Em determinado momento entrou no quarto. Os brinquedos estavam guardados em caixas plásticas, mas não foi motivo para não os tirar um por um. No “dog-taxi” apertou um botão e com a música tocando começou a dançar com as mãos nos ouvidos , seu tique nervoso indicando estar encabulado. Depois puxou o velocípede e pediu para empurrá-lo. As brincadeiras não tinham muita duração. Sempre outro brinquedo chamava sua atenção para mostrar o que sabia fazer com ele. O importante era se afirmar no mundo da brincadeira. Assim procedeu com todos e o quarto virou uma bagunça onde até para pisar no chão tornou-se difícil.
Depois de duas horas de brincadeiras, a mãe chegou. Abraços e beijos se repetiram. No entanto ao chegar a hora do banho, de vestir o pijama, apresentou mais uma novidade: “Pensam que não entendo que depois do banho vão me botar para dormir, hoje não vai ser fácil, nem pensem que vou dormir. Meus avós estão aqui e ainda tenho muita coisa para mostrar a eles.”
Foi trabalhoso a mãe e a avó convencê-lo: parecia um gato com pernas e braços estirados para não entrar na banheira. Entretanto, o pior estava por vir: “Do jeito que estou com sono, se vestir esta camisa de força que faz dormir na hora, não vou resistir, eu quero ir pro braço do vô e da avó.”
Mais algumas brincadeiras e aceitou o pijama. Daí em diante a briga com o sono foi de cortar o coração. O avô pegou livros de estorinhas- “Não quero”; ligou o vídeo- “Não quero.”. A única saída foi a avó colocá-lo no braço e cantar: “Dois dedinhos, sabidinhos fazem não….não…não, três dedinhos sabidinhos fazem sim…sim…sim,” enquanto o avô com dois dedos, fazia sombras na parede ao compasso da canção. Mesmo assim, não quis se deitar no braço: “Pensam que sou besta de perder esta oportunidade de ficar com meus avós? Eles pouco vêm aqui e quando vêm vou dormir?… vou nada. Eu brigo com o sono. Quero ver ele me derrubar. Vou pular, dar cambalhotas em cima da cama, abrir e fechar a cortina”. Com tantos movimentos, a resistência física foi minguando, se esgotando, até sumir. E mais uma noite se passou com os anjos em sua vigília.
22/05/04
* * *
(Texto extraído do livro “Dias Felizes” – autor: Saulo Marden)

Obs: Imagm enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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