Djanira Silva 20 de outubro de 2009


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Quando o mundo começava a se apagar, tudo ficava mais triste. Hora do banho, hora de dormir. Depois do jantar a mãe pegava a cartilha, lápis e pedaços de papel desenhava uns garranchos e mandava a menina copiar. Todas as noites era assim, as duas cochilavam ali mesmo.
Acordavam de manhã com o barulho das galinhas no quintal, cacarejavam quando acabavam de pôr. Sinhá Maria jogava milho e a tia procurava os ovos nas moitas de capim.
No domingo o barulho era diferente, pareciam pressentir a morte, iam para a panela.
A menina gostava de pensar. Fugia para o nada e nem ouvia quando as pessoas falavam. Era preciso chamar mais de uma vez para que voltasse à realidade. A mãe costumava dizer: esta menina é mal ouvida.
As crianças, naqueles tempos, não podiam falar nem perguntar, só respondiam quando perguntadas. Nos dias de chuva não saiam para brincar e ficavam de rostos colados nas vidraças onde os pingos escorriam desenhando caminhos.
Ficar dentro de casa era castigo. Nas cadeiras da sala não se podia brincar. Estavam sempre arrumadas, limpas, enfeitadas com panos de crochê e nelas só as visitas podiam sentar. Não entendia por que o pai comprara cadeiras se não podiam usar. De tempos em tempos ele trocava por outras ainda mais bonitas, as proibições eram as mesmas. Um dia, junto com a nova mobília, veio um porta-chapéus. A menina ficou fascinada pelo espelho oval, brilhante. O fascínio durou pouco, era muito alto e ela não podia alcançá-lo. Subiu numa cadeira. Caiu quando a mãe gritou, desde daí menina. Bateu com a cabeça e ainda levou palmadas. Era assim mesmo, as crianças eram punidas até quando já estavam castigadas.
Quando o vento andava por longe, procurando histórias, ela sentava na beira do tanque. Na água parada via a imagem de uma menina muito feia. Nas histórias de Sinhá Maria havia espelhos que falavam e refletiam sombras e fantasmas. Não perdia a esperança de se ver refletida num de verdade. Foi quando a tia contou a história de Branca de Neve e da madrasta que conversava com o espelho. Um dia, quem sabe, teria um somente seu, para poder contar e ouvir histórias e saber o que se passava no mundo mágico que existe por trás deles.
Todas as manhãs a voz grossa do pai abalava toda a casa: o café está na mesa. Nos dias frios ela não tinha vontade nem coragem para sair da cama. A tirania e o medo, espantavam frio e preguiça.
O sol ainda nem havia chegado ao quintal e as crianças já estavam lá procurando o que fazer num mundo que para eles começava e terminava ali mesmo.
Os que estavam na escola sabiam das ruas e dos caminhos. Os limites da menina não passavam da cozinha e da sala de jantar e ela sofria, sofria porque criança não tinha direito a nada. A mãe dizia que ela era curiosa. Deveria ser alguma coisa muito ruim porque só se preocupavam com ela para brigar e botar de castigo. A avó disse: curioso é quem quer saber de tudo. Isso ela era mesmo.
O quarto dos pais era um chamariz. O espelho do guarda-roupa uma atração. Queria se ver refletida nele. Precisava entrar naquele quarto.
Um dia, pela manhã, a mãe foi à costureira. Os irmãos estavam na escola. Sinhá Maria varria o quintal e a avó sentada na porta da cozinha remendava algumas roupas. Livre de qualquer vigilância, a menina entrou no quarto. Tudo arrumado, vestidos, jóias, sapatos, perfumes. Abriu todas as portas e gavetas. Teve medo quando se viu no espelho, demorou a se reconhecer. Na prateleira de cima os vidros de perfume, os de remédios, pacotes de algodão, cremes. Um deles era um pozinho branco que chiava quando se botava água. Já vira o pai tomar várias vezes. Colocou um pouquinho num pedaço de papel e meteu no bolso do vestido, fez o mesmo com o batom já meio gasto e um resto de ruge. Estava distraída quando escutou barulho na porta da sala. Correu para o quarto da avó. Tinha era vontade de jogar fora umas coisas que ela guardava num caixote vazio embaixo da mala: um vidro com vinagre, outro azeite, outro com sal. Com aquelas coisas tratava dos machucados dos netos. Fazia isto quando o pai estava em casa, na presença dele ninguém abria nem a boca.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Do quintal para o mundo –

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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