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I – Introdução (ou Da Desesperança)

Entre o nada e o tudo, entre Demócrito e Parmênides, jazeu o espaço. Aqui, entre nós, ele subsiste, talvez, em termos concernentes a Berkeley ou a Malebranche: como meios de percepção de uma ideia. Não hei de trazer Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, Newton, Leibniz, Kant ou Einstein à disputa; basta-me o ditame simples: espaço é onde tudo é possível. Resta, contudo, dar sentido às possibilidades. Nesse intuito é que se crava um fato no tempo: pronto, mata-se a liberdade daquele espaço e o que outrora era possível já passou a ser passado. Eis por que à sucessão dos acontecimentos engastados no espaço-tempo, dá-se o nome de memória e, à fonte alimentadora desta, de vivência.

Vivência, em um de seus sentidos – e, certamente, por metonímia –, refere-se, simplesmente, àquilo que uns e outros vivenciamos. Assim, logo se há de imputar à questão do espaço aquilo que jaz no que se vive em momento ímpar, único, singular. Tal singularidade no viver, nada obstante, é termo invulgar: se presente em nós, o enredo da vida deixa de ser só livro e torna-se cimélio. Agregar valor à trama da vida, portanto, é tarefa árdua. Das estratégias para tal, há, especialmente, a da viagem. Viajar é, nos termos em que o vocábulo será apresentado, dar significados a novos espaços. Na viagem – adianta-se a noção – é que se teriam o descanso e as novidades, as quais não deixariam aparecer a repetição, que não é personagem desejada na tragifarsa da vida. Tal tragifarsa, hei de dizer-to, é como uma tetralogia, cujas quatro peças são, respectivamente, o nascimento, o aprendizado até a maturidade, a velhice e, por fim, a morte. Delas, as três primeiras somam as tragédias e a última – a morte –, a grande e final sátira, que aos olhos incrédulos – e quase sempre tristes – ridiculariza e torna pequeno tudo o que ainda pulsa e está vivo.

Ei-lo, enfim, o pincho do pensamento: refletir sobre uma viagem, generalizá-la sobre as cabeças de todos os homens e, assim, vislumbrar o edifício simbólico que se alça a cada vez que se deixa o comum e corriqueiro para se ir ao encontro do desconhecido. Ora, a viagem, em termos claros e sem subterfúgios, nada é – como já quase se disse – senão o instrumento de mudança do espaço circundante, que é sempre utilizado quando não se pretende mudar o indivíduo. Havemos de notar que todo espaço circundante é ancípite: dependendo da face que apresenta, ou consome o homem ou o regurgita. A consumição não é a regra e o regurgitamento, menos severo, acontece nos momentos em que nos são impostas as reflexões que nos levam somente a lugares de onde podemos voltar e efetivamente voltamos. Alheios a tais espaços, estão os lugares sem retornanças, que jazem além da proposição sete do Tractatus, de Wittgenstein: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen” – “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.

Um esboço de antropologia concernente ao espaço há de reconhecer a importância do desconforto humano como motivador da criação de novos sentidos para o que rodeia o próprio homem. Se inda duvidas, repara no curimatã quando está de uaiúa: o ar, para ele, é a proposição sete. Assim como o curimatã uaiuante, há muita vez homens que ultrapassam o limite, são consumidos e desaparecem. Ir à terceira margem do rio é quase desumano: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” é o ditame rosiano, que pode sussurrar até aquele que anda em camelo idoso. O imperativo de que se deve ir para nunca voltar é o sino que badaleja na cabeça e faz tremer, tiritar, todas as estruturas do ser humano. É, em resumo, o que materializa com verossimilhança inigualável o “Nevermore” do temido corvo de Poe.

Quanto ao meio pelo qual se escolhe dar novos significados ao espaço, talvez seja plausível afirmar que tal escolha não é, pelo menos em todos seus termos, fruto da razão, da concatenação do pensamento ou da reflexão elaborada. Seria, isso sim, instintiva, impulsiva, arrebatadora. De tudo, como bem asseveraria um antipirrônico, diz-se que viajar para lugares de novas semânticas parece ser meio cujo fim não é a tranquilidade de espírito, mas sim a tormenta desejada, a almejada fuga da ataraxia. Ora, viagem é mudança interior, para viver outras coisas, mudando o resto. É descobrir que há ali outras linhas de chegadas e outros pontos de largada – assim mesmo nesta ordem inversa – mas, a descoberta – e, às vezes, apenas a própria busca – pode mudar tão drasticamente o descobridor que o processo se torna sem voltas, sem retornos, sem possibilidades de arrependimentos. Mudar-se a si mesmo, em resumo, é destruir a própria desesperança.

II – Algumas Histórias

Dei vazão prática ao projeto da viagem. Quanto ao lugar, escolhi o sertão: terra austera e robusta. Fortes são também, como pude constatar, as crenças dos sertanejos em suas histórias incríveis e, é por isso, que é o sertão um lugar incomparável: traz na fortaleza de sua terra, antes de tudo, as forças que moldam o amoralismo formador da livre personalidade do sertanejo e, em seu ar, na dúvida constante da chegada da chuva, os lampejos que modelam sua susceptibilidade. Isso já é argumento para torná-lo um lugar ímpar, único e inigualável.

Entre os espécimens presentes nas histórias que a mim me foram contadas, havia distintos e fantásticos personagens, como Chiquinho de Mané Santoro, o qual vinha sempre com uma conversa de que seu avô possuíra há umas boas décadas um cavalo que era, de longe, mais inteligente do que todos os homens que conhecera. O interessante a notar é que, não sem algum propósito, vê-se, quiçá na esteira de Chiquinho de Mané Santoro, que há os psicanalistas que relacionam aos equinos caracteres concernentes aos mais sombrios caminhos do psiquismo inconsciente.

Não precisou de muito tempo, antes mesmo que eu soubesse o que esboçar como espanto, um bom narrador logo engrenou outra e disse que um de seus vaqueiros, Luiz Calisto, era entre nós humanos o único que sabia de um papagaio que, por opção – subentendida a partir de uma das últimas falas da ave –, havia tentado suicídio no tanque d’água dos patos e que, além disso, demonstrou veemente aborrecimento com o fato do vaqueiro não ter se esforçado em seu salvamento. Ora, nada senão a aleivosia deve ter naquele momento preenchido o coração do psitaciforme. Seria, nesses termos, a repetição da história como farsa: outrora, Julius Cæsar – mais belamente o de Shakespeare –, antes de morrer, sente a traição na punhalada de Marcus Brutus e diz “Et tu, Brute?” ou, para os que preferem o grego ao latim, “Καί σύ, τέκνον” – Até tu, meu filho? –, e agora, ele, o papagaio, passa por semelhante perfídia – quase uma traição – e, impostando a voz ao máximo, bem poderia ter dito “até tu, Calisto?”, mas não o disse.

Da arte de dizer, realmente fruem os sertanejos, posto que, de imediato, asseverou-me um que havia também, entre outros seus amigos, o Chico de Teodoro de Maninha, que embora fosse mais recatado que imodesto, não deixava de bradar após umas doses de conhaque que havia sido fonte de inspiração para um desses personagens de telenovela e, disto, não apresentava nenhuma dúvida. Em conjunto, toda aquela reminiscência só me fez crescer o desejo de conhecer de mais perto a terra dos fantasmagóricos contadores de maravilhas, de histórias que a nós nos parece tão distantes e incríveis, que nos custa acreditar que eles nelas realmente acreditem.

III – O Nome “Pau dos Ferros”


O interessante é que depois pude eu notar que há algumas histórias que são inenarráveis, pois graças à sua natureza maravilhosamente ilógica e absurda, delas a linguagem – pelo menos em prosa – não consegue dar conta. Outras, não obstante, são dizíveis e de tal característica é que se torna mais poderoso o demônio-homem do sertão. Entre esta última estirpe, há, por exemplo, aquela que deu origem ao nome da cidade de Pau dos Ferros, no alto sertão do Rio Grande do Norte, onde se encontra a fazenda que visitaria. Segundo tal história, como contam uns e outros, há tempos imperava perto de um lago no alto oeste do Rio Grande, uma árvore do tipo oiticica, cajazeira ou jucá, não bem se decidiram a história ou a invenção. Fato é que ela – exemplar farto de belo vegetal – destacava-se pelo tamanho e, consequentemente, pela sombra que proporcionava.

Sombra, vale dizer, é moeda de grande valor lá onde se vive sob o sol sertanejo. Por isso, era tal o lugar em que o gado, o qual era conduzido de um lado a outro do sertão, recebia alguns momentos de sossego da caminhada. Podiam, portanto, saborear um pouco das águas lacustres, sempre ao sabor das securas de seus organismos ou, principalmente, das idiossincrasias de seus vaqueiros condutores. Estes, os vaqueiros, por suas vezes e no mesmo intuito das reses, refaziam-se do cansaço, proseavam e fugiam do castigo do sol. Aqui, é bom que se relembre Guimarães Rosa, quem, com propriedade, disse que duas são as consequências quando vaqueiros proseiam: ou saem cabeças quebradas ou saem boas confissões. Ele está duplamente certo, mas falta-lhe o terceiro resultado, que se deu na história de Pau dos Ferros. É que lá, sempre após o descanso, movidos ou por necessidade ou pelo mesmo motor que faz as crianças escreverem os próprios nomes nas carteiras escolares, os vaqueiros aproveitavam o tronco da indefesa árvore para testar os seus ferros de marcar gado.

Não é que fosse o hábito totalmente descabido. Cascudo, por exemplo, registrou uma justificativa para a referida prática de marcar a árvore. Segundo ele, os riscos quentes na oiticica tinham como função o armazenamento e a exposição da legitimidade dos ferros de gado. Não hei, ou por preguiça ou pela natureza aqui desnecessária da discussão, de entrar na disputa. O fato é que, alheios à psicologia que insistia em lhes entender os quereres, os vaqueiros acendiam uma pequena fogueira, esquentavam os ferros até tornarem-se impetuosas e brasis armas e, depois, como se fossem ímpios senhores da natureza, marcavam indelevelmente o tronco com o símbolo que haviam bois e vacas de propagar sertão adentro. Sendo assim, como contam, a prática foi se disseminando e, pouco tempo depois, não mais havia um só vaqueiro que não ousasse macular a árvore dos ferros ou, como a chamavam, o pau dos ferros.

Como é prática em alguns povos, o escopo do nome generalizou-se e, desta feita, as redondezas da árvore começaram a ser denominadas da mesma forma que o tronco do vegetal. Pau dos Ferros tornou-se, então, não apenas a árvore, mas toda a cidade que crescia em sua proximidade. Hoje, ao que parece, destruíram a árvore inicial e, em seu lugar, há o mercado da cidade, alguns gatorros esfomeados e, em perímetro maior, a vastidão do sertão, que, assim como Pau dos Ferros, merece ter a história do seu nome abordada.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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