“Ser tão sertão” era o título de um belo espetáculo, coleção de textos do grande Guimarães Rosa, recitados por Lima Duarte, entremeados por belas canções de Rolando Boldrin. Este recital nos confirma: o sertão é mais do que uma característica do semi-árido nordestino, mineiro, ou goiano. Incrusta-se no coração de cada ser humano, moldado por aquelas paisagens sem fim. Evidentemente, existe a recíproca que fazia Luiz Gonzaga, com o seu vozeirão, repetir na clássica Asa Branca: “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação…”.
Estas recordações me vêm à memória quando, no Festival de Cinema de Veneza o mundo assiste ao filme “Viajo porque preciso. Volto porque te amo”, dos nordestinos Marcelo Gomes e Karim Ainouz. O primeiro já havia nos presenteado, há poucos anos, com o belo e tocante “Cinema, Aspirina e Urubus”, filme que a gente quase tem de assistir com óculos escuros para conseguir contemplar a claridade deslumbrante do sol sertanejo e vislumbrar as cores do nordeste ecológico e humano. Em 2004, Veneza se deliciou com Árido Movie, do pernambucano Lírio Ferreira. Agora aplaude de pé o novo filme dos dois jovens sertanejos. Na entrevista coletiva, explicou um dos diretores: “Cada país tem seu deserto. O sertão é uma viagem para a memória de um vazio” (Cf. Diário de Pernambuco, 05? 09/ 2009).
A paisagem em que nos criamos marca muito nossa personalidade. Os nativos das cordilheiras são introspectivos. Os mineiros das montanhas das Gerais são preponderantemente cautelosos e sagazes, assim como os nordestinos das planícies da zona litorânea têm mais tendência a ser faladores e brincalhões. Entretanto, todos eles carregam no coração a nostalgia e mesmo a vocação de um ermo silencioso, árido e pobre, no qual um Mistério nos aguarda e espreita. Todo ser humano é, no mais profundo do seu eu interior, atraído por um sertão que não é apenas geográfico, mas espiritual. Neste sentido, o sertão aponta para um deserto que todos nós, cedo ou tarde, temos de aprender a percorrer.
No passado, as grandes tradições espirituais nasceram na aridez do deserto. No sexto ou quinto século antes de nossa era, no deserto de Gobbi, em território chinês, o sábio Confúcio formulou a sabedoria dos seus ensinamentos. Um século depois, na Índia, foi na solidão e no silêncio que Buda, o Iluminado preparou-se para a sua missão. Conforme a Bíblia, Deus “não levou o povo de Israel da escravidão do Egito à terra da liberdade por um caminho direto, mas o fez dar voltas no deserto, durante 40 anos” (Ex 13). Foi no meio do deserto que, através de um povo, Deus fez uma aliança de amor com a humanidade. Mais tarde, o profeta Elias, em crise de vocação e em perigo de vida se refugia no mesmo deserto para um novo encontro com o Divino. E, conforme os evangelhos, Jesus de Nazaré começou sua missão por um jejum de 40 dias no deserto. Seis séculos depois, em meio ao deserto da Arábia, o anjo Gabriel apareceu ao profeta Maomé e ditou o livro sagrado do Corão.
Nenhum deles morou permanentemente no deserto ou ensinou que o ser humano deve viver no deserto. Entre as seduções da sociedade urbana que, muitas vezes, nos distrai e desvia de nossas metas mais profundas (no Êxodo, o povo chama isso “as cebolas do Egito”) e a liberdade interior e comunitária de uma sociedade nova e mais sóbria, o deserto é o caminho e o método. Lutero dizia que é uma etapa perigosa porque, nela, não se tem mais a segurança que a terra das escravidões parecia proporcionar e nem ainda se alcançou o novo da liberdade a qual se almeja. Mas, é preciso arriscar. Como dizia Guimarães Rosa, no Grande Sertão, Veredas: “O mais perigoso não se dá na partida, nem na chegada. O risco maior é a travessia”.
Uma grande ajuda para quem é peregrino é saber que, mesmo se tem de percorrer um caminho pessoal, este percurso não precisa ser feito de forma isolada. Pode contar com o apoio e a presença discreta de irmãos e irmãs que seguem juntos a mesma aventura. Para os cristãos, vale o que Paulo escreveu aos gálatas: “Ajudem uns aos outros a carregar o fardo do caminho. Assim cumprem a jornada e realizam a lei do Cristo” (Gl 6, 2).
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.