“A Democracia sem a Ética é como um Ser Humano sem valores Morais: um ente sem dignidade, respeitabilidade e honradez, em suma, um ser réprobo e ímprobo.”
O escritor Augusto de Franco, escrevendo, recentemente, para o jornal Folha de São Paulo, afirmou-nos uma verdade histórica e irrefutável: “A democracia não tem proteção eficaz contra o uso de procedimentos democráticos (como as eleições) contra ela própria”. Tal assertiva nos foi desvelada num momento por demais oportuno, tendo em vista a crise moral e institucional que estamos vivendo no Senado Federal e no contexto mais amplo da nossa República, sobretudo, nesses tempos de governo Lula.

Mais que isso, como verdade histórica que é, cumpriu-se, profeticamente, no dia de ontem, no âmbito das votações que ocorreram no Conselho de Ética do Senado Federal. Assim foi que, seguindo o script democrático, numa eleição entre pares, por sufrágio universal, via voto aberto, nove dos quinzes senadores que compõem o aludido Conselho de Ética – entre esses o Senador sergipano Almeida Lima –, isto é, a maioria, resolveu, sem discussão alguma, arquivar – de uma só vez, como se estivessem jogando lixo na lixeira (e sem o devido procedimento para separar o que é reutilizável ou não!) – as onze representações interpostas contra o presidente do Senado, José Sarney, acusado de diversos atos de corrupção moral e política.

Vendo o que vimos ontem neste Conselho, olhando para os ideais da nossa tão festejada democracia, podemos perceber o quanto ela é frágil e vulnerável. A maioria, numa eleição “democrática”, assim decidiu. Tudo certo, então, não é mesmo? Não, nada certo. Uma decisão imoral que constrangeu não só aos senadores de conduta ilibada – poucos, ressalte-se – mas ao povo brasileiro, pelo menos os que têm consciência das mazelas da corrupção que se apoderaram da instância político-republicana mais representativa dos estados federais brasileiros.

Ontem, na nossa República Federativa do Brasil, assim como tem sido na história dos estados nacionais modernos, ficou patente e bastante claro que: a democracia foi vítima da própria democracia. Tudo isso porque, se ao longo dos séculos, pôde-se perceber que o Estado de Direito não foi suficiente para atender os anseios da humanidade – e daí o surgimento do Estado Democrático de Direito – agora, é premente a necessidade de se pensar e se redimensionar um Estado para além – muito além – do meramente democrático: um Estado Ético do Direito. Porque se houver Ética na formação do Estado e do Direito, por certo, o governo será do Povo, pelo Povo e para o Povo, como quer a Demoscracia (termo de origem grega, onde demos é povo e cracia é governo).

Na América Latina, por exemplo, o mero Estado Democrático de Direito tem se mostrado incapaz de enfrentar o neopopulismo manipulador de presidentes como Hugo Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia, Manuel Zelaya, ex de Honduras, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael Correa, do Equador, Álvaro Uribe, da Colômbia e o nosso Lula. Todos a desserviço da democracia constitucional representativa e precursores do novo modelo democrático latinoamericano: a Democracia Totalitária. Todos esses presidentes, através de procedimentos da própria democracia (evidente que viciados por elementos da corrupção do ser humano: compra de votos, prostituição e etc.) conseguiram ou conseguirão mandatos que chegam até vinte anos de exercício do poder máximo, como é o caso de Hugo Chávez na Venezuela, desvirtuando, assim, a própria historicidade do regime democrático que surgiu num contexto contrário às autocracias. Seja como for, num olhar rápido e superficial, todos diriam, como o fizeram a OEA e a ONU no caso Honduras, que são governos democráticos constitucionais por terem sido estabelecidos via sufrágio universal. Mas, em verdade, não o são, ou, se o são, são governos democráticos sem fundamentos éticos, isto é, como dissemos na epígrafe, entes réprobos e ímprobos, vítimas da própria incapacidade do modelo democrático de se defender das suas vulnerabilidades procedimentais. No dizer do professor Denis Lerrer Rosenfield (UFRGS): democracias totalitárias que se distanciam em muito do modelo de democracia representativa que conhecemos.

Neste sentido, o aludido professor, em artigo publicado, também recentemente, no Jornal O Estado de São Paulo, faz uma importante distinção, longa, mas digna de citação completa:

“Há duas acepções da democracia em questão, a da democracia totalitária e a da democracia representativa ou constitucional. A democracia totalitária volta-se contra o espaço de liberdade próprio da sociedade, de suas regras, leis e instituições, o que é precisamente assegurado pela democracia representativa. Esta se baseia no exercício da liberdade em todos os seus níveis, da liberdade de imprensa, de expressão, de organização política, econômica até o respeito à divisão dos Poderes republicanos, passando pela consideração do adversário como alguém que compartilha os mesmos princípios. Disputas partidárias, por exemplo, são regradas e não desembocam no questionamento das próprias instituições, vale dizer, da Constituição. Nesse sentido, processos eleitorais se inscrevem neste marco mais geral, não podendo, portanto, ter a autonomia de subverter os princípios constitucionais, o ordenamento das instituições. Processos desse tipo são necessariamente limitados.

Nas democracias totalitárias temos um processo de outro tipo, em que o voto passa a ser utilizado de forma ilimitada, como se ele fosse por si mesmo, graças à manipulação de um líder carismático e de seu partido, o princípio do ordenamento institucional. Eis por que tal tipo de regime político tenta funcionar por meio de assembleias constituintes e referendos sistemáticos, num constante questionamento de todas as instituições, tidas por “burguesas” e expressão das “elites”. A democracia totalitária não admite nenhuma limitação, nenhuma instância que a regre. Tende a considerar tudo o que se interpõe no seu caminho como não-democrático, ganhando o epíteto de “direita”, “conservador” e “neoliberal”.
Pode-se dizer que a democracia totalitária se caracteriza por essa forma de ilimitação política, tendo como “inimigo” a limitação própria das instituições sociais, das instâncias representativas. Ela terá como alvo a ser destruído todo espaço que se configure como independente, em particular aquele espaço que torna possíveis as liberdades individuais e o processo de livre escolha. Não pode suportar um Estado de Direito, baseado precisamente nessas liberdades. Ou seja, a democracia totalitária não pode suportar a democracia liberal, também dita representativa ou constitucional, pelo fato de assegurar a existência de leis, de Poderes e de instituições, que não se podem adequar a tal processo de mobilização totalitária.
Eis por que as democracias totalitárias partem para questionar toda forma de existência democrática, social, que não se estabeleça conforme os seus desígnios. Os meios de comunicação que não aceitem ser instrumentalizados passam a ser considerados inimigos que devem ser abatidos, seja por diminuição de verbas publicitárias, seja por processos judiciais, seja por mecanismos de controle ou de banimento dos mais diferentes tipos. O contestador deve ser silenciado, pois não obedece aos ditames do “povo”, de tal “maioria” politicamente constituída. As esferas que asseguram a livre iniciativa individual são progressivamente circunscritas e limitadas, de modo que as pessoas sintam medo e passem a agir de forma não autônoma, como se assim houvesse uma conformidade ao que é “popular”. O Estado de Direito, por sua vez, é cada vez mais menosprezado, seja por não-obediência à legalidade existente, seja pela modificação incessante de leis e normas constitucionais, seja por atentados cometidos contra os princípios mesmos de uma sociedade livre.
A democracia totalitária volta-se contra os direitos individuais, contra os direitos das pessoas de não se dedicarem aos assuntos políticos, de se contentarem com seus afazeres próprios. Ela se volta contra as instituições por estas interporem um limite ao seu desregramento. Ela se volta contra a propriedade privada tanto no sentido material, de bens, quanto imaterial, de liberdade de escolha. Ela se volta contra todo aquele que reclame pela liberdade. Eis a questão com que nos defrontamos na América Latina. A clareza dos conceitos é uma condição da verdadeira democracia. ”


É exatamente isso que está acontecendo na América Latina e também, em certa medida, no nosso Brasil. É o caso da crise do Senado. A maioria, desprovida de sentimento ético, fez o que fez no caso Sarney. Como se a democracia pudesse sobreviver sem os valores estruturantes da moral.

Um Estado Democrático de Direito sem Ética é um Estado que não respeita os valores fundantes das democracias representativas: a dignidade, a respeitabilidade e a honradez das pessoas humanas que consentiram em constituí-lo.

Uziel Santana (Professor da UFS e Advogado)

http://www.uzielsantana.pro.br

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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