O centenário de nascimento de Edélzio Vieira de Melo traz à tona, de forma bem contundente, uma página que deslustra o Judiciário eleitoral, materializado na troca de urnas ocorrida na eleição de 03 de outubro de 1954, especificamente em Itabaiana. Mais do que isso, é uma verdade que incomoda, à medida que mostra, de forma evidente, que o Judiciário, à época, não cumpria o seu papel de imparcialidade e de veículo de justiça, deixando-se contaminar pela cor partidária que dividia o Estado. Abaixo da toga do magistrado, sem conseguir escondê-la por inteiro, estava a camisa do partido político.

Manoel Cabral Machado, que esteve na linha de frente, na condição de advogado e político do PSD, apesar de toda a cautela que caracterizava suas afirmações, não consegue segurar a verdade que no Estado inteiro circulava, ao consignar, em BRAVA GENTE SERGIPANA E OUTROS BRAVOS, na parte referente à figura de Edélzio Vieira de Melo, o nome do “exímio artífice da fraude com as autoridades militares” (p. 107), ou seja, o desembargador Hunald SantaFlor Cardoso, então presidente do Egrégio Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe. A fraude reuniu, no mesmo ato, o Judiciário eleitoral e os militares que deveriam guarnecer as urnas. A acusação, aliás, não se constituía em novidade. É fato histórico, já registrado em outros livros, com detalhes, como, por exemplo, em A MINHA HISTÓRIA POLÍTICA, de Nivaldo Santos (Gráfica & Editora Boquinense, s/data).

Em Itabaiana, colocaram as urnas na Prefeitura Municipal que foi fechada, no início da noite, do dia da eleição, para facilitar a sua troca. Dentro da Prefeitura ficaram algumas pessoas, escondidas que, a partir de certo momento, providenciaram a substituição das verdadeiras urnas por outras. Já ouvi que um servidor do Banco do Brasil, presidente de seção, foi chamado para rubricar as novas cédulas, entre outras barbaridades que a fraude deixou escapar. A sua assinatura não era fácil de ser imitada, optando os mentores da troca de urnas em convocá-lo para que ele próprio, com a sua assinatura e seu silêncio, autenticasse as novas cédulas, como forma de legitimar a troca.

Seixas Doria, na campanha de 1962, pedia ao eleitorado que não deixasse as urnas sozinhas, em nenhum momento. Em Itabaiana, um pessedista levou a sério. Ficou sentado a noite inteira, em sistema de sentinela, para que ninguém se aproximasse das urnas, no salão maior da Prefeitura Municipal. Não arredou o pé um só minuto. Era o trauma de 54 que ainda doía.

O interessante de tudo é que a Justiça Eleitoral escorregou na casca de banana nas eleições que organizou depois da redemocratização do país, fruto da Constituição de 1946. A tradição de eleições fraudulentas e mentirosas, herança da República Velha, prosseguia. Antes, havia uma justificativa: era o próprio Governo quem a organizava. Isto é, macaco negociando com banana. Em Itabaiana, durante todo o período de República Velha, não ocorreu nenhum confronto entre situação e oposição, porque já se sabia, de antemão, que o Governo não seria vencido, fato que ocorria em todo o país. É só consultar as denúncias de Ruy Barboza ante a eleição presidencial perdida para Hermes da Fonseca. Mas, agora, era o Judiciário eleitoral quem comandava, através de magistrados, circunstância que deveria impor um freio à fraude. Deveria. Mas, a cor partidária era maior, a ponto de se apontar, entre os desembargadores locais, do final dos anos quarenta e da década de cinquenta, quais eram os udenistas e quais eram os pessedistas. Na eleição estadual de 1950, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral, depois de divulgados os resultados, se defende das acusações desferidas por Leandro Maciel, então candidato derrotado, revelando, humildemente, ter votado no candidato udenista. E era preciso tanto? A desculpa de Sua Excelência está inserida em livro oficial, editado pelo próprio Tribunal, com os resultados da eleição.

Contudo, arrisco a afirmar: a fraude da eleição de 03 de outubro de 1954 não deve ser vista como fato isolado. Há algo estranho nas eleições sergipanas de 1947, 1950 e 1954. É só abrir os jornais da época para se aperceber que cada partido (os jornais eram escancaradamente partidários, de forma que cada um tinha o seu) divulgava um resultado diferente. A apuração no interior chegava a capital via telegrama. Mas os números variavam de jornal para jornal. No do PSD, por exemplo, Edélzio tinha maioria. No jornal da UDN, Leandro ganhava. Talvez só os antigos consigam explicar a diferença de números de um jornal para outro, cuidando-se da mesma urna, do mesmo município, e, ainda, da mesma eleição.

A vitória de Arnaldo Garcez, em 1950, por diferença de poucos, pouquíssimos votos, na qual, salvo engano (estou me valendo da memória), se incluem urnas anuladas em determinado município afastado da capital, foi largamente contestada pelos vencidos. Ora, logicamente se as urnas anuladas tivessem sido contadas, o resultado poderia ter sido outro, levando em conta a pequena diferença de votos entre o vencedor e o vencido. Depois, os udenistas, por seu turno, não engoliram o fato de o dr. José Rolemberg Leite ter sido candidato, em 1947, quando ainda não tinha atingido a idade exigida na Constituição Federal. Ou seja, havia um ambiente propício ao revide e a desforra, como única maneira de derrubar o PSD em Sergipe. Na minha presunção (posso estar errado, evidentemente), a fraude de 1954 foi uma reação, em um mundo em que ninguém era absolutamente santo.

A troca de urnas, se garantiu a UDN a chegada ao poder, deixou as pegadas fortes na inspiração de outros métodos desde o momento de inscrição do eleitor. Em Itabaiana, nestes velhos tempos, o cartório eleitoral tinha penas diferentes. Uma, era reservada ao eleitor da UDN, permitindo que assinasse o nome tranquilamente. Outra, se destinava ao eleitor do PSD: no momento de acionada, se abria e o eleitor, que não dominava a arte de escrever o próprio nome, se afobava e não conseguia ir adiante. Ter três a quatro títulos de eleitor, ainda em Itabaiana, era fato público e notório, à época, objeto das conversas dos inconformados eleitores do PSD, que, ao ameaçarem rasgar o título, ante cada derrota eleitoral, ouviam, de um deles, uma observação simples: você, que só tem um título, vai rasgá-lo; já fulano, udenista, que tem quatro, não rasga nenhum.

Para Edélzio Vieira de Melo sobrou a derrota, moeda com que se viu obrigado a pagar pelos pecados de um sistema que não merecia a confiança devida.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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