No silêncio, o canto do grilo martelava na sua cabeça misturando-se às lembranças de um tempo que a saudade não deixava esquecer, saudade que a gente sabe quando nasce, e sabe que não morre nunca.
Matar saudade não é crime.
Na alma, o cansaço das estradas percorridas. Na pele, histórias escritas pelo tempo em linhas certas e tortas. O Convento, o Colégio, a Catedral, a Capelinha uns pareciam, velhos monges, outras jovens noviças, vigias perpétuos no meio da praça, no caminho do Prado da Baixa Grande. Em todos a sabedoria de gerações. Onde se entrava criança e saia-se adulto pronto para enfrentar a vida.
Caminho da cachoeira. As amigas seguiam a menina sapeca, de vestido de chita, pés descalços, cabelos loiros, olhos de mato verde, dona de todas as brincadeiras e que punha em reboliço o mundo e os cabelos cacheados que lhe escorriam pelos ombros. Não gostava quando a mãe fazia duas tranças amarradas por laços apertados que lhe espremiam o juízo. Chorava, não gostava de pentear os cabelos.
À noite, olhava o cruzeiro no alto da serra. Antes de dormir, imaginava o menino Jesus fazendo cabriolas, pendurado na cruz feito ela fazia no pé de romã.
Era sempre assim, corria e despencava ladeira abaixo com a liberdade de quem ainda não era gente. Assim dizia a mãe: tá pensando que é gente? Não é não.
A avó acrescentava: desde que me entendi de gente… E passava a desfiar um rosário de lamúrias, um não acabar de coisas ruins. Pensava que ser gente não era coisa boa.
Na sua alma desfilavam os sonhos de um mundo apressado, descuidado, que esmagava lembranças.
Fechou os olhos, tudo a levava a se ver novamente jovem caminhando ao redor da praça.
Aos domingos, matinê. Filmes repetidos que ninguém se importava de ver mais de uma vez. Os de Shirley Temple, os preferidos. Queria ser igual a ela, eram da mesma idade.
Olhava-se no espelho, via-se com cara de Shirley, só faltavam os cabelos encaracolados. Chorava quando a mãe ia penteá-los, queria por que queria quer ela fizesse cachos o que era impossível, os cabelos muito lisos não seguravam os grampos. A avó mandou a cozinheira fazer chá preto bem forte. Talvez assim conseguisse enrolar os papelotes. A mulher fez e colocou açúcar. Os cabelos ficaram parecendo com os das bruxas de pano que a mãe comprava na feira. Por muitos dias não pronunciou o nome de Shirley como se ela fosse culpada. Passou um tempão esquecida da pequena estrela, até que viu uma foto na revista onde a garota usava uma saia de xadrez pregueada, blusa branca enfeitada com fitas e rendas, sapatos, pulseira e meias soquetes. Na cintura um grande laço. Mostrou à avó que logo mandou fazer igual. Ela jamais lhe negava algum pedido.
Tudo acontecera ali, naquela casa a mesma onde vivera a melhor parte da sua infância. Sentiu vontade de chorar. Desavessou novamente o tempo e viu a mãe às voltas com os trabalhos da casa. O cheiro de café, a fumaça saindo do bule, a mesa grande, o trem apitando, a chaleira fervendo, o tempo apagando sem dó, as imagens e os sonhos.
Ninguém modifica o destino da vida nem dos caminhos. Eles esperam e guardam o que restou de nós, e, com a saudade nos devolvem as lembranças para anular o esquecimento.
Obs: Texto retirado do livro da autora – Do quintal para o mundo.