D. Dalva Damiana é uma das grandes damas de Cachoeira. No próximo dia 27 estará completando seus 81 anos. E nessa ocasião estará sendo aberta a sua Casa do Samba de Roda, no centro da cidade, Rua Ana Nery, 19. Há muito tempo que ela tenta e luta por um local para organizar o seu samba de roda. Esse samba é um patrimônio da cidade, é o mais antigo e não recebe nenhum apoio dos poderes públicos. Ela e os outros sambas são chamados para abrilhantar as festas da cidade, mas na realidade, falta nos poderes públicos uma sensibilidade maior para apoiar as expressões do povo – bastava uma parte minúscula do que se paga às bandas de S. João que tocam lá nas festas, para que houvesse um incentivo efetivo a essa manifestação.
Essa Casa, que ora se abre, pretende ser um órgão agregador e incentivador do samba de roda na cidade. Sua primeira vocação é a de ser representante dessa tradição que é tão bem enraizada na vida do povo do Recôncavo. É levar adiante a preservação da memória de um patrimônio. A cidade de Cachoeira é, com suas tradições, um pólo representativo da cultura baiana. Por isso mesmo, o projeto que guia essa Casa quer estar ligado às atividades culturais que já se realizam na cidade, através dos órgãos oficiais, ensino superior e as associações e grupos particulares que já estão presentes na cidade.
O incrível em D. Dalva, que é uma pessoa que não tem cultura formal ou acadêmica, tem a visão da necessidade de continuidade, não apenas do seu samba, mas dessa realização em si mesma. Ela é marcada por uma tenacidade e uma fé inquebrantáveis. Sempre notou que as crianças e jovens não tinham tanta sensibilidade para essa expressão musical – muitos diziam que é “coisa de velho, das nossas avós”- e preferiam outros ritmos. E para abrir e cultivar essa sensibilidade, ela criou o samba mirim. Hoje há integrantes do grupo dos mais velhos que são provenientes daquela iniciativa. A nova Casa objetiva realizar a transmissão desse bem cultural às jovens gerações. Nessa perspectiva, a Casa será um espaço para serem executadas e desenvolvidas oficinas de música, dança, de aprendizagem dos instrumentos de percussão, tudo circulando em torno do samba de roda. A Casa pretende também abrigar um acervo bibliográfico e visual (vídeo, CD, fotos), para incentivar a pesquisa que resgate e preserve esse valor da cidade e do recôncavo.
Já desde 2004 que o samba de D. Dalva foi inscrito no livro das formas e expressões do IPHAN. Em 2005, juntamente com outras quarenta e três expressões culturais internacionais, o Samba de Roda foi consagrado como Obra Prima Oral e Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), sendo a primeira expressão brasileira a obter tal reconhecimento. Mas mesmo assim, com toda essa titulação, não tem havido uma ajuda efetiva para apoiar esse valor brasileiro e do recôncavo baiano, no sentido de haver sedes que abriguem e incentivem, no caso concreto, os sambas de Cachoeira.
O samba de D. Dalva é também conhecido por “Suerdieck”, pois naquela fábrica ela trabalhou e com suas companheiras, na hora do intervalo do trabalho, cantavam e dançavam para aliviar o cansaço da rotina diária.
A Casa do samba de D. Dalva será aberta com uma exposição do acervo pessoal dela, roupas e fotos, com manequins representado as sambadoras e sambadores adultos e mirins. Além de abrigar o acervo desse samba, será um local para ensaios, onde oficinas relacionadas com o tema terão lugar.
Tudo que D. Dalva faz está associado à fé. Sua grande devoção é a Nossa Senhora dos Navegantes.Deixemos que ela mesma explique o porquê de sua devoção.: “Quando estava grávida de minha primeira filha (há 57 anos), realizou –se a última festa de Nossa Senhora dos Navegantes. Morava na Rua do Alambique.Era semelhante ao Bom Jesus dos Navegantes . As pessoas atravessavam para S. Felix. Cada ano o samba revezava em cada cidade. A ponte se movia de tanta gente. No rio a imagem vinha no barco do lado de Maragojipe. No meu coração, achava que essa festa não devia acabar”. E como ela tem alma de poeta e de compositora, recita esse refrão:” Mas graças a Deus que outras festas em Cachoeira melhoraram. Veio o Patrimônio consertando os bangalôs, me traga de volta o trem, me traga de volta o vapor. Nossa Cachoeira é bela, é jóia, diamante, só falta voltar agora a Senhora dos Navegantes”.
Toda a alegria de D. Dalva ficou estremecida nesses dias com a morte de um dos seus netos, integrante do seu samba, Luciano Cerqueira, que morreu afogado na barragem da Pedra do Cavalo. Que Nossa Senhora dos Navegantes o conduza à paz da casa do Senhor.
Sebastião Heber. Prof. adjunto de antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.