teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Não apenas por ser casada com um argentino, portenho legítimo e militante, meu encanto por Buenos Aires existe e se mantém inalterado ao longo dos anos. Trata-se de uma cidade com charme europeu e identidade latino-americana em rara combinação de cultura, beleza, sofisticação, inteligência e umas ruas onde é delicioso passear, olhar a arquitetura, comer bem e barato.

Conheço igualmente algo da Argentina profunda. Não apenas a turística e bela Bariloche, mas outros recantos da paisagem majestosa da Patagônia, além de cidades do interior: Mendoza, Salta, etc. Muito diferentes da capital, são, no entanto, essas cidades argentinas coerentes com a identidade do país e com o alto nível de educação de seu povo. Por tudo isso, nunca deixa de chocar-me como os anos da ditadura militar conseguiram ser tão cruéis e sangrentos neste país de tanto desenvolvimento e com um povo tão politizado. Em recente viagem, trouxe de lá um livro que é o pungente relato de uma missionária francesa que escapou da morte fugindo para a França no último minuto.

Tal não foi a sorte de duas outras irmãs de sua congregação. Uma delas, Alice Domon, de apelido Caty, foi presa quando manifestava sob as janelas do palácio presidencial juntamente com as mães da Praça de Maio. Um dos manifestantes era um frio e cruel militar infiltrado, o capitão Astiz, apelidado Gustavo Niño, que conquistou a confiança das mulheres e depois entregou a lista de seus nomes às forças da repressão.

Quando a irmã Caty foi presa, estava em casa de outra irmã da congregação, Léonie, pessoa de idade e completamente alheia a militâncias políticas e manifestações públicas. Prenderam as duas, das quais nunca mais se soube nada. Nos jornais puseram uma foto de ambas com uma declaração que as forçaram a assinar. Com visíveis marcas de tortura, emagrecidas pela fome nos cárceres do poder militar, a fotografia chocou o país.

A partir daí, Irmã Ivone nunca mais soube de suas coirmãs. Foi nessa ocasião que um homem simples do bairro onde trabalhava avisou-a de que a estavam procurando. Foi questão de horas, minutos talvez, o tempo que lhe permitiu, depois de alguma hesitação, embarcar num avião e desembarcar em Paris.

Lutou durante anos, denunciando a barbárie que se passava no país onde escolhera viver e entregar sua vida pelo Reino de Deus. Foi a Genebra, às Nações Unidas, aos Estados Unidos. Seus depoimentos foram realmente peças importantes para que a ditadura argentina fosse paulatinamente sendo desmontada. A grotesca Guerra das Malvinas, onde muitíssimos jovens argentinos perderam a vida, alguns mortos de frio por não terem agasalhos adequados, foi a pá de cal que desmascarou a ilegitimidade daquele governo.

Passaram algumas décadas antes que Irmã Ivone soubesse o que realmente acontecera com suas duas irmãs. Logo após a foto que circulara nos jornais, foram levadas assim como todas as outras senhoras que, diante da Casa Rosada, exibiam a própria orfandade dos filhos e netos desaparecidos em um avião. Lá, após devidamente dopadas e despojadas de suas roupas, foram atiradas do avião no Rio da Prata. As correntes levaram os cadáveres para perto do delta e o corpo de Léonie foi reconhecido. Não o de Caty.

Ivone soube do destino de sua amiga apenas pelo relato de uma prisioneira que havia conseguido fugir e lhe contou que ela também estava no grupo que súbita e misteriosamente “desaparecera” da prisão para ir ao encontro da morte no fundo das águas. Ela também estava no voo da morte, mas seu corpo ou o que restava dele não pode ser enterrado dignamente.

Após a volta da democracia na Argentina, pudemos ver notícias de vários cemitérios encontrados em diversoà pontos do país. Dali saíam cadáveres “desaparecidos” que eram procurados há décadas. Com eles, enterrada estava também a dor dos parentes, familiares, amigos que choraram durante anos, décadas, a morte sem cadáver de seus entes queridos.

O depoimento de Irmã Ivone é forte e impressionante. Após o final da ditadura, essa corajosa mulher voltou à Argentina e lá vive até hoje, trabalhando junto aos pobres, com desvelo e amor. A memória das duas mártires com quem conviveu e de cuja amizade privou a sustenta na incansável luta pela liberdade de um povo que deseja ser livre e que tem todas as condições para sê-lo, se não o impedisse uma e outra vez a crueldade dos ditadores e dos donos do poder.

A Caty, Leonie e Ivone, nossa mais sentida e emocionada homenagem, assim como a todos os mártires da luta pela liberdade que regaram com seu sangue o solo do sofrido continente latino-americano.

Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. ( wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/ )

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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