Malu Nogueira 22 de setembro de 2009

 

Para viajar nesse trem da saudade
Não é preciso muito.
Apenas a bagagem
Que deve ser fácil de levar,
Um assento, perto da janela,
Uma luz difusa, olhos que clareem a mente,
Levando por caminhos antes percorridos
E perdidos nas encostas da vida.
Lá vem o trem.
Passa aqui,
Passa acolá,
O vendedor grita: Olha a revista!
Tem O Cruzeiro, Realidade e Intervalo.
Afogados da alegria,
Com o povo sofrendo secas tenebrosas.
O trem passa dentro das serras.
Na estação tem gente de todos os lugares,
Ruas das reminiscências, com nomes
que evocam filhos falecidos.
Seria tão mais fácil
transformá-las como o povo chama-as:
Ruas do Açougue, da Cadeia, da Praça da Igreja,
da Ladeira, do Cabaré, Ladeira do Gosto do Padre,
E assim, por diante.
O som que vem da rua
Mistura-se ao cheiro da vida.
Um vendedor grita: Olha a ta-pi-o-ca,
Outro responde: Macaxeira papa,
Num samburá tem traira, mandim e piabas. O freguês escolhe.
Afogados das festas.
Do beiju, da beira seca, do arroz mexido, do tijolo de goiaba,
Do doce de leite ao bolo de barra,
Cidade dos parques, das quermesses, sorteios e pifeiros.
Cidade de minha infância, da minha juventude.
Das ladeiras e becos,
Dos banhos no poço de Benedito e no Rio Pajeú.
Das brincadeiras de ximba, pula corda,
Amarelinha, bola de meia e pedrinhas
Das risadas sem fim.
Do inigualável pôr-do-sol,
Da alegria derramada
Na juventude soberba,
Dos filhos que não querem dela partir.
Saudade sem fim, dos vizinhos e amigos,
Das famílias Rodrigues, Almeida e Malaquias,
Barbosa, Góes, Amaral, Virgínio, Queiroz.
Das costureiras, rezadeiras e bordadeiras.
Afogados das cadeiras nas calçadas, num balançar sem fim,
Na espera infinda do ar fresco que não vem,
Prosear, tricotar e namorar.
Olhar quem vem, passa ou morre.
Rezar as novenas do mês de maio,
Fazer a trezena de Santo Antônio.
Ir à novena de São Sebastião,
Brincar de queimado,
Levar bolada no peito,
Pedalar de bicicleta nas ruas de pedra.
Lá vem o trem.
O relógio da igreja a badalar as horas,
Comércio a fechar suas lojas,
Ouvir o sino tocando,
É missa, é enterro, é alguém que faleceu.
Como era gostoso ir comprar açúcar ou café,
Nas mercearias de Vicente Véras ou Zé Coió,
Comprar cachetes nas Farmácias Lima e de seu Cazuzinha.
Sair repetindo a palavra açúcar, açúcar, no final, distrair-se,
Esquecer a palavra, voltar em casa,
Levar uma reprimenda,
E retornar, chorando, matraqueando a palavra: a-çú-car, a-çú-car.
Sair escondido e ir olhar as cheias do rio Pajeú.
Ver menino, acocorado, na calçada do cinema,
Esperando a irmã que namora.
Gostar do frio do mês de maio.
Ouvir a mãe recomendar: Vá arrumar-se para ir à missa.
Olhar as bandeirolas de São João,
Dançar pertinho, nos ensaios de quadrilhas ouvir as palavras anarriê, olha a chuva
Lá vem o trem.
Quem quer comprar quebra queixo, pirulito de açúcar, pipoca.
Gelada de coco, goiaba e abacaxi,
Lá vem o trem
Trazendo notícias do mundo.
Lá vem a chuva,
Com relâmpagos e trovões.
Olha a tanajura,
Vem assar e comer.
Lá está a casa de meus avós,
Lá tem um gato e um papagaio.
Lá foi o trem e tantas pessoas.
Lá veio o trem com essas lembranças,
Mastigando melancolia.
Lá vai o trem,
Dobrou minha saudade.
O amanhã não tem mais trem.
Lá foi o trem.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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