a quem pertence o Poder Constituinte? (Parte II)
No artigo anterior, vimos que a Constituição Federal não deixa dúvidas a respeito de “a quem pertence o Poder Constituinte”: à Nação Brasileira. Vimos também que, como corolário desta assertiva inicial, ao STF, cabe, estritamente, ser o guardião dos princípios e preceitos fundamentais que ela, a Nação, definiu no texto constitucional, sem ir além, aquém ou fora dos parâmetros valorativos estabelecidos. Salientamos, mais, que o STF, ao decidir sobre questões que envolvem o complexo ideário moral e sociocultural da denominada consciência nacional, os seus mores maiorum civitatis (o bem, o belo e a verdade da sociedade, em termos comportamentais), não pode fazê-lo com implicações de ordem legiferante e mutacional ou de construção e desconstrução “legislativa”, sob pena de estar incorrendo no gravíssimo e ilegítimo fenômeno sociológico da judicialização do Poder Constituinte Originário.
Pelo texto do dispositivo constitucional em análise, o Povo, a quem pertence todo o Poder, legitima as ações do Poder Legislativo e do Poder Executivo, porque esses são os seus representantes eleitos. E quem legitima, então, o Poder Judiciário, tendo em vista que os seus membros, na assunção aos cargos da magistratura, não são eleitos? Por que o texto constitucional não estabeleceu, de modo expresso, categórico e unívoco que, quando o Poder Judiciário julga, aí, também, o Povo está a exercer o seu Poder de constituir? Até poderia fazê-lo, mas não vou responder a essas indagações do meu texto. E não o farei porque o que quero enfatizar é ainda mais grave: ora, se com uma dúvida desse nível – a respeito da legitimidade do Poder Judiciário em decidir os casos concretos – já vivemos o atual estágio de exacerbação do ativismo judicial e da judicialização do Poder Constituinte Originário por parte do STF, imagine se não houvesse dúvidas, no texto constitucional (como está escrito o parágrafo único do art. 1º), a respeito dessa legitimidade fundada na soberania popular.
Isso tudo só evidencia, de modo claro e indubitável, que a atuação do STF e do Poder Judiciário como um todo, não pode ir além, ou ficar aquém ou mesmo fora, do que a Nação brasileira, reunida em Assembléia Nacional Constituinte, determinou no texto constitucional. Ao contrário, deve-se circunscrever ao ideário moral, sociocultural – os mores maiorum civitatis – da consciência nacional. E isso só acontece se, no julgamento das ADI’s e das ADPF’s, se for buscar o que, técnica e juridicamente, denominamos de ratio legis, ocasio legis e mens legis. Assim, cabe a cada Ministro da Suprema Corte (nacional!) buscar, no processo de cognição e intelecção que faz do caso concreto às normas do Sistema Jurídico Brasileiro, qual a razão (a ratio legis) que levou o legislador constitucional (a Assembléia Nacional Constituinte, forma de expressão do Povo) a estabelecer aquele determinado dispositivo constitucional, quais as circunstâncias reais e históricas (a ocasio legis) que levaram à consecução daquela estrutura do texto constitucional e, do mesmo modo, qual a intenção (a mens legis) do legislador constitucional ao estabelecer determinado dispositivo textual. Somente agindo assim, com este raciocínio hermenêutico tridimensional, o STF estará respeitando o Estado Democrático de Direito e, por via direta e necessária – no dizer do próprio Ministro Carlos Ayres Britto – estará tornando o Estado Democrático de Direito em Estado de Direito Democrático.
Certamente, ao ler tais assertivas, alguns poderiam objetar esta tese citando a (anti)tese – e ao nosso sentir, uma tese anarquista e antidemocrática – de Peter Häberle que em “Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” (1975) chega a assentir que até mesmo um único cidadão está potencialmente autorizado e apto a oferecer alternativas para a interpretação constitucional mesmo que tais alternativas se coloquem de modo contrário ao entendimento do ideário moral da maioria da sociedade. A idéia é: a sociedade (e aqui se leia, no mesmo grau de importância: um só cidadão, um só grupo ou a sociedade como um todo) é aberta e livre para interpretar, sem a necessidade da observância da ratio legis, da ocasio legis e da mens legis do momento histórico solene da Assembléia Nacional Constituinte. Isso é o que denominamos de o Carpe Diem da Hermenêutica Constitucional. Totalmente anárquico e antidemocrático.
Evidente que – como apontou Konrad Hesse em “A Força Normativa da Constituição” (1959), fulcrado em Ferdinand Lassale – na consecução do texto constitucional, ainda na fase de Assembléia Nacional Constituinte, não se pode, de modo peremptório, deixar de se observar as condicionantes reais e históricas da sociedade. Não se pode e não se deve, porque, em assim sendo, não estaríamos a ver, no texto constitucional, a verdadeira expressão democrática do Poder do Povo. Como diz Hesse, “a normatividade submete-se à realidade fática”. Na vigência e aplicação concreta do texto constitucional, tal normatividade – já submetida no momento da feitura do texto às condicionantes históricas do Povo – torna-se eficaz e tem renovado o seu âmbito de validação consuetudinário, quando o intérprete oficial (no nosso caso o STF), com o Poder que o Povo o conferiu, re-estabelece, na resolução dos casos concretos, a ratio legis, a ocasio legis e a mens legis, pois essas, pelo menos em tese, formam o complexo político de expressão da vontade popular.
O máximo que o STF pode realizar – se quer ir além desta teoria tridimensional da hermenêutica constitucional, fundada nos elementos interpretativos da ratio legis, da ocasio legis e da mens legis – é se valer, mutatis mutandis, de um modo análogo, no texto dos seus acórdãos jurisprudenciais, da técnica alemã (usada na Suprema Corte) denominada “apelo ao legislador” (o Appellentscheidungen). Esta técnica consiste em o Tribunal exortar ao legítimo representante do Povo – o Poder Legislativo – que, tendo em vista as transformações fáticas da atual realidade histórica, este deve proceder a uma determinada alteração constitucional ou infraconstitucional. O Tribunal abstém-se de proferir a declaração de inconstitucionalidade (ou, no nosso caso, de descumprimento de preceito fundamental), apenas apelando ao Poder competente e legítimo a procedê-lo. Isso é altamente democrático. Penso que assim deveria fazer a Corte Constitucional brasileira.
Por fim, resta-nos corroborar, de modo peremptório, o que disse um importante juiz inglês, Lord Devlin (“Chorley Lecture”, 1974), a propósito desta “antecipação de consenso legislativo” que impera no nosso Poder Judiciário:
“É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desviação só aparentemente provisória; em realidade, seria ela a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.”
Destarte, nós, da Nação Brasileira, fundados no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, apelamos aos Senhores Ministros do STF que não tentem exercer, com as suas importantes decisões a respeito de temas paradigmáticos e fundacionais do nosso ideário moral e ético, um papel que não os cabe na via democrática do Estado de Direito.
Uziel Santana (Professor da UFS e Advogado)
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