Países da África enfrentam situações de vida mais pobres e difíceis. Talvez a partir deste pretexto, na República Democrática do Congo e em países vizinhos, o governo dos Estados Unidos faz prospecção de petróleo e várias empresas multinacionais desenvolveram minas de diamantes. Pagam ao governo local preços irrisórios pela ocupação da terra e dão trabalho a moradores locais por um prato de comida ou por uma taxa mínima, pago ao governo e não aos trabalhadores. Estes não vêem salário, mesmo se se matam em um trabalho pesado e realizado em condições de risco. Neste contexto, compreendemos por que a ONU faz questão, cada ano, de dedicar o 23 de agosto como “dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição”. Não se trata apenas da recordação triste de um passado distante, hoje, superado. Ao contrário, os organismos internacionais calculam que quatro milhões de seres humanos, atualmente, são vítimas do tráfico de escravos. No Darfur e em alguns países da África, mercadores de escravos ainda se concentram nas fronteiras para vender crianças de oito a doze anos, por 500 ou 1000 dólares cada uma. Nos países da antiga União Soviética e na Europa Oriental, mulheres e moças de menor idade são seqüestradas e levadas para ser escravas sexuais nas estradas da Espanha, Itália e da França. Nesse tráfico, o preço por uma pessoa pode chegar até 30 mil dólares. Assim, esse negócio macabro gera até 12 bilhões de dólares por ano. E, infelizmente, o Brasil é dos países mais envolvidos neste comércio de seres humanos para a Europa.

Entre nós, a escravidão no campo ainda é atual em fazendas do interior, nas quais, cada ano, descobrem-se peões, trazidos de regiões longínquas para trabalhar sob ameaça de armas ou a pagar dívidas que nunca poderão saldar. A Pastoral da Terra e organismos do Ministério do Trabalho, assim como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) têm contado com a política federal para prender pessoas inescrupulosas que cometem este crime. Estes organismos de defesa do trabalhador denunciam publicamente estes casos e, principalmente lutam no Congresso pela desapropriação imediata de fazendas escravistas para fins de reforma agrária.

A principal conseqüência da escravidão, esta chaga que atinge a história da humanidade e assolou tantos de nossos países, é a exclusão social que ainda marca os descendentes de escravos. Quando se deu a lei da abolição, as pretensas vítimas a serem indenizadas foram os proprietários das fazendas, engenhos e casas grandes que se queixavam de suas perdas econômicas. Nenhum governo pensou em indenizar negros ou índios, vítimas diretas do tráfico e da escravidão. A única saída destes foi encher as ruas das cidades ou os engenhos com barracos infectos, onde os brancos nem se arriscavam a entrar. Hoje, esta população continua sendo uma das vítimas do comércio de drogas, nova versão do tráfico humano que emprega crianças e adolescentes para correr os riscos da prisão e da morte.

Todos estes fatos podem ser lidos e sabidos como dados frios de uma engrenagem sem alma e de um mundo sem rumo. Quem vive em um país injusto como o nosso lida cotidianamente com crianças de rua, com pessoas marginalizadas e com filas de doentes nos postos de INSS. Além disso, a justiça funciona quase sempre contra os empobrecidos e só em casos raros alcança alguém da classe alta que pode pagar fiança e garantir advogados caros.

Há quem pense que a convivência permanente com tanta desgraça gere no ser humano uma espécie de insensibilidade como a de uma pessoa que conviveu tanto com um determinado vírus que acabou sendo vacinado/a. Na verdade, isso não é assim. Ninguém se torna mais capaz de sentir o sofrimento dos outros por saber menos ou por não ver as coisas que acontecem. Infelizmente, tanto no tempo em que os escravos eram oficialmente vendidos e comprados, até hoje em que mais de um bilhão de seres humanos vive em condições subhumanas, a imensa maioria das pessoas se preocupa em fazer algo para mudar esta situação. O que leva as pessoas à compaixão solidária é a opção de vida.

Uma espiritualidade ecumênica da paz e da justiça leva a pessoa a se deixar tocar por essa realidade, não apenas como um sentimento de pena diante do sofrimento eventual de alguém, mas como empatia de compaixão para com o outro, assim como pela convicção profunda de que o mundo não será sadio, enquanto toda e qualquer pessoa não for respeitada integralmente em sua dignidade humana. Quem foi tocado no íntimo pelo olhar de uma pessoa empobrecida ou explorada em seus direitos sabe que não se sai ileso deste encontro. É uma experiência que mexe tão profundamente com o mais íntimo do ser humano que, para muitos, pode ser um momento privilegiado de encontro com o Divino. Foi este encontro que levou o príncipe Sidartha Guatama a se transformar em Buda, assim como levou Jesus a ter suas entranhas movidas de amor uterino a ver as multidões abandonadas como “ovelhas sem pastor”. Foi a partir deste encontro com o povo que ele testemunhou que o reinado divino está chegando ao mundo (Cf. Mc 6, 30- 34).

Ao falar desta solidariedade que transforma o mundo, assim se expressou sua santidade, o Dalai Lama: “A capacidade de empatia recíproca que todos possuímos deve ser desenvolvida. É o que, em tibetano, chamamos de shen dug ngal wa la mi so. É isso que provoca o sobressalto quando ouvimos um grito por socorro e é o que nos impede de fechar os olhos e ignorar a desgraça alheia”.

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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