“A FESTA DA IRMANDADE DA BOA MORTE E O ÍCONE ORTODOXO DA DORMIÇÃO DE MARIA”

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Lancei já em duas edições um pequeno livro, que é trilingue (português, inglês e espanhol) sobre o tema da Boa Morte, intitulado “ A Festa da Irmandade da Boa Morte e o Icone Ortodoxo da Dormição de Maria”. Essa pesquisa foi apresentada no V Congresso do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia ( Casa da Bahia) na ocasião das comemorações dos 500 anos da Baia de Todos os Santos.Agora está sendo lançado no dia 14/08/09, na Câmara de Vereadores de Cachoeira, às 10:30 h, dentro de uma conferência proferida pelo vice-prefeito de Salvador, Dr. Edivaldo Brito, sobre o tema:”As irmandades como lugares de preservação da identidade e da cultura negra”.

No Prefácio da 1ª edição (2002) o Pe. Sadoc lembra que o autor “buscou as origens dessa jovem e secular Irmandade, dos incertos princípios de nossa formação aos esplendores litúrgicos das festas de agora, festas dos simples de coração, louvando a Mãe de Jesus, a Senhora da Boa Morte, a Rainha da Glória”. Na 2ª edição (2005)o Professor Edivaldo Boaventura mostrou que essa festa já foi celebrada em muitas cidades do Recôncavo, como em Feira de Santana, mas “devemos a essa publicação um dado novo, isto é, uma interpretação teológica com a alternativa da ‘Dormição’, termo usado pelos cristãos do Oriente médio para designar a Boa Morte, isto é, a crença na elevação de Maria aos céus”.A 3ª edição é do Dr. Antonio Amorim, Diretor do Departamento de Educação da Uneb e diz que “as Irmandades e Confrarias foram as forças agregadoras das mais puras tradições negras no nosso país e , especialmente na nossa região.Por isso mesmo, os estudos relacionadas a elas não se esgotam”.

Também registro que existe uma outra Irmandade da Boa Morte em S. Gonçalo dos Campos, que é uma migração da de Cachoeira – lá também são conservados elementos do sincretismo afro. Há ainda uma outra em Stª Brígida, perto de Paulo Afonso. Mas essa não tem elementos afros, pois vem diretamente da devoção popular portuguesa, lá introduzida pela Madrinha Dôdo, seguidora do Beato Pedro Batista, no final da década de quarenta.

Há várias especulações sobre a origem da Irmandade da Boa Morte . Odorico Tavares é de opinião que a devoção começou no início do século XIX, em Salvador, na igreja da Barroquinha, em torno de 1820 . Algumas irmãs, já no início do século XX , teriam se deslocado de Salvador para Cachoeira, recriando lá a Irmandade da Boa Morte.

É bom salientar que o final do século XIX e o início do século XX, no Recôncavo, foram marcados por uma atmosfera de progresso e uso de novas tecnologias .Todo esse conjunto de convergências favorece, e muito, os contatos entre os muitos negros do Recôncavo, estreitando mais os seus laços . Alguns autores querem ver o surgimento da Irmandade da Boa Morte em Salvador dentro do grande fluxo de interesses e lutas pela independência, que teria gerado uma distensão entre senhores e escravos, unindo-os numa mesma luta comum.
Os dois primeiros dias de celebração em Cachoeira são marcados por uma procissão inicial e a celebração da Missa. Podemos dizer que são Missas fúnebres. A imagem de Maria é transportada num esquife mortuário. No primeiro dia, a grande intenção da Missa é pelas irmãs já falecidas, e após a Missa há uma ceia fúnebre, chamada de Ceia Branca. Lá só se serve peixe, arroz branco, pão e salada – são alimentos litúrgicos, leves, simbólicos. Além da dimensão do alimento nos cultos afros ( o wajeum ), está presente a dimensão cristã da Ceia – há naquele momento uma conjugação de elementos que podem deixar entrever resquícios de várias tradições.

Como tantas outras tradições religiosas, a da Boa Morte veio de Portugal. E aqui se amalgamou com as tradições afras, especialmente no Recôncavo.

O cientista social Massimo Montanari diz que a convivência à mesa é um elemento “estruturante” da civilização.Estudos recentes mostram que em 40 Confrarias medievais portuguesas (entre os séculos XII e XV) havia , de forma ritual, um momento especial para o alimento. Alem desse momento ser uma ocasião de fortalecimento da coesão grupal, era, igualmente, um instrumento que colocava as pessoas em íntima coesão com o sagrado.

As refeições revestiam-se de diferentes formas, de acordo com um certo número de variáveis. Cada uma das confrarias estudadas mostrava preferência por uma das formas,mas havendo algumas que sustentavam dois tipos diferentes de refeições. Pode-se destacar três tipos: 1)Mesas e Jantares; 2)Colações; 3) Convites, Confrarias e Bodos.

No primeiro item, pode-se dizer que se concentravam 65% dos casos estudados. O segundo tipo preenche 30% dos casos em apreço. Era uma refeição ligeira, com alimentos não cozidos e servido à noite. Elas podiam ser periódicas. Mas havia as não-periódicas, que se realizavam, o que se pode bem entender, na ocasião dos funerais dos integrantes. Ela objetivava, através do rito alimentar, estabelecer uma comunhão ente os vivos e os mortos – eram as Colações Fúnebres. Parece que a Ceia Branca preenche bem esse tipo de refeição, da qual poderá ter “herdado” muitos elementos. O terceiro item associa termos na mesma rubrica, mesmo que eles não cubram a mesma realidade. Mas têm em comum o fato de serem abertas à comunidade e acompanhadas de expressões lúdicas.

O termo “Boa Morte” refere-se à morte e subida aos céus de Nossa Senhora. E ele não é um mero eufemismo ou simples adjetivação para nomear esse momento da morte-vida de Maria, crença que tem suas raízes na tradição dos primeiros séculos do cristianismo. Essa tradição religiosa do cristianismo católico foi trazida pelo português,mas vindo de longe, do Oriente cristão (Dormição), e que no rito latino ou romano, chama-se de Assunção ou dia da Glória de Maria.

Sebastião Heber Viera Costa
Professor Adjunto de Antropologia da UNEB,da Cairu, da Faculdade 2 de Julho.Membro do Instituto e Geográfico Histórico da Bahia, e da Academia Mater Salvatoris.

Obs: Imagem do autor.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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