Djanira Silva 17 de agosto de 2009


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O crochê escorregou do colo e caiu ao chão. O olhar da mulher escorregou pela janela e perdeu-se no passado.
“Desce daí, menina, você cai.”
Era a voz da mãe sempre ralhando, sempre proibindo as boas coisas da vida, como subir em árvore, no muro da casa vizinha, andar descalça, correr atrás do gato, pinotar com o cachorro, amarrar rabo de pano na saia da lavadeira, enfim, todas estas pequenas coisas que marcam de alegria a infância.
Mas, proibição de mãe não valia mesmo nada, pois a menina só fazia o que bem queria.
“Vai te sentar, menina, deixa de barulho. Cala a boca!”
O diabinho enganchado nas suas pernas a ajudava a correr mais e a pular mais, a fazer mais barulho e a falar cada vez mais alto. Enfim, a menina reinava, isto quando o rei do dia não era o chinelo da mãe no seu traseiro.
Gostava mesmo era da avó. Ela, apesar da idade, parecia ainda criança, pelo menos entendia as diabruras da menina. Usava sua sabedoria contra as rabugices da filha defendendo a neta com unhas e dentes pois sua experiência lhe ensinara que quem coloca freio na gente é a idade.
Galhofeira como só ela sabia ser, ensinou a menina a dizer:
– Quando ficar velha, eu paro.
A avó costumava ainda ralhar com a filha:
– Deixa a menina em paz. Não tenha cuidado, se ela cair, o diabo apara a queda, pois criança quando morre vai diretinha para o céu.
E a filha respondia:
– Cuidado, mãe, cuidado.
A avó não dava trela à filha, ria a bom rir com aquele seu jeitinho debochado. Para a menina ela sabia de tudo pois entendia que nada daquilo levava a nada. Muitas vezes surpreendia em seu olhar uns lampejos de inveja incontida diante das suas cabriolas e momices.
Ai, como era boa a sua avó. Como se cansava inutilmente sua mãe, sempre dizendo:
– Não faça isto, não faça aquilo.
Agora, depois de passado o tempo, também já velha e cansada, como sua avó é que a inutilidade de tantos conselhos lhe chegava como uma realidade.
A mulher apanhou o crochê. Na queda perdera-se a agulha e perdido também andara o seu pensamento pelo mundo a fora, fugindo pela janela aberta.
Como sentia saudade em todas aquelas lembranças, das rabugices da mãe, da criança que fora, da adolescente inconseqüente e sem temores. Que saudade danada! A pior que sentimos é a de nós mesmos.
Não conseguiu nunca entender a incoerência da vida.
Quando criança queria pular, correr, saltar, subir em árvores, escalar o muro da casa vizinha, correr atrás do gato, pular atrás do cachorro, ninguém deixava. Agora, já cansada de tanto andar, de tanto olhar, de tanto viver, depois que o tempo a ensinara a parar, escutava sem poder entender.
– Você precisa andar. Na sua idade não pode ficar sentada nem deitada muito tempo. Tem que se movimentar.
A mulher voltou ao seu crochê. Recolheu o olhar e o pensamento. Voltou para dentro de si mesma. Esqueceu o passado e a criança sem saber se alguma vez na vida agira certo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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