De repente, ele chega. Um tanto careca, cabelo branco, barba para fazer, pasta em uma mão, guarda-chuva em outra, a camisa escura, de manga comprida. Trazia livros de atas para que eu datilografasse uma e remetesse cópia para os parlamentares sergipanos. Acho que tudo tinha a finalidade de adquirir verbas para o Cantagalo, tarefa na qual deve ter sido mestre. Sugeri que era mais adequado encaminhar as cópias em papel com o timbre do Cantagalo. E aí ele me perguntou como era o papel com timbre. Expliquei. Umas duas semanas depois, com o mesmo trajo e a mesma cara de humildade, Chico do Cantagalo retornou com os papéis timbrados com o nome do Cantagalo Futebol Clube, fundado em tanto de tanto, reconhecido de utilidade pública, etc. e etc. Datilografei as atas e redigi os ofícios. Serviço feito. O resultado não me chegou ao conhecimento.

Conheci Chico do Cantagalo ainda menino, no centro da rivalidade travada entre o Itabaiana e o Cantagalo. O Itabaiana com a feição do PSD. O Cantagalo, da UDN. O clássico local cercado de emoção, o Estádio Etelvino Mendonça superlotado, as duas equipes se digladiando em campo, parecendo que, ali, no início do Cruzeiro, se decidia a copa do mundo. Eu, menino, espantado, torcedor do Itabaiana, na sua camisa, aliás, feia, de listas horizontais, no azul, branco e vermelho. O Cantagalo, de camisa vermelha. Chico, no seu comando, o riso, a simplicidade, a dedicação, o astro número um do time, presidente, dirigente maior, técnico, roupeiro, até aplicador de injeção. Representava tudo no time, a ponto de ter o seu nome ligado ao clube. Não era um Chico qualquer, mas Chico do Cantagalo. Não há registro de ter sido atleta da equipe, ou de ter, ao menos, chutado uma bola, uma vez sequer.

O nome, Francisco Vilobaldo de Oliveira, que só servia para os cartões de boas festas, no final do ano, que ele não cansava de enviar. O que valia era o apelido, para ficar bem claro tratar-se do Chico que comandava o Cantagalo. A cara sempre foi a mesma, das minhas lembranças de menino até a última vez em que o vi. A rivalidade entre o Itabaiana e o Cantagalo ficou incorporada a década de cinquenta. O Itabaiana foi para o futebol profissional e o Cantagalo ficou no amadorismo. Chico atravessou o período mais crítico da rivalidade, sem perder a fidalguia, sem angariar inimigos, sem despertar antipatia alguma, sempre simples, essencialmente simples, de uma humildade que o elevava a um grau superior. Um nome querido, uma pessoa simpática. Nem a briga do PSD com a UDN, nos tempos mais duros e sanguinários, foi capaz de colocá-lo no meio da rivalidade, apesar de a UDN ter escolhido seu time para os litígios com o PSD. Chico se encheu de uma força maior para passar por aqueles tempos sem se meter na vida política. Para ele, o futebol estava no sangue, e, no coração, o Cantagalo, registre-se, o Cantagalo dos anos cinqüenta, que foi o maior de todos os tempos. A rivalidade dos times e dos partidos ficou encravada na história local. Chico continuou sua trajetória de dirigente do futebol amador, o mais longínquo que Itabaiana teve. Itabaiana, não, o Estado de Sergipe, superior as picuinhas politiqueiras, aos fuxicos e as perseguições inerentes e decorrentes. Não se melou com a tinta partidária.

A partir de certo momento, reconheço, me perco na história do Cantagalo. O que aconteceu com o clube depois que o Itabaiana passa a participar do campeonato profissional? Não sei. As lembranças que me aparecem é a da propaganda que Chico fazia quando um clube amador, de Aracaju, ia jogar em Itabaiana, destacando o número de partidas invictas, como a alertar que, se o Cantagalo ganhasse, era uma façanha, e se perdesse, bem, já era esperado, o adversário visitante vinha embalado. A meninada alertava que, quando o Cantagalo perdia, não era o Cantagalo, mas o Água Verde, time secundário, que a partir de certo momento, foi criado. Mas, esse tempo passou, e, a gente perde o contato com o Cantagalo, que continuou vivo no nome de Chico, porque, independentemente do destino que tomou e que eu não sei o qual, o Cantagalo viveu esse tempo ao lado do criador, acompanhando seu nome, como uma sombra que o qualificou sempre.

Não sei dizer se o Cantagalo ainda funciona com time certo e definido, de que campeonato participa, o número de jogos que faz mensalmente, se realiza treinos semanalmente, nada, nada mesmo. A atualidade do Cantagalo não me chega ao conhecimento, que só alcança o passado. E nesse passado, o fato de que o Cantagalo terminou se tornando um trampolim para o Itabaiana, o pessoal nascendo com a camisa do Cantagalo para depois trocá-la pela do Itabaiana, fato que envolveu muitos nomes, na década de sessenta, sobretudo.

Um dia desses, vendo o retrato colorizado do Cantagalo, que Romeu (ou teria sido Ciro Moreira?) exibia na entrada de seu atelier, me espantei com os jogadores, perguntando a mim mesmo se eram aqueles os atletas que provocavam tanta emoção na torcida do Cantagalo nos seus memoráveis e inesquecíveis embates com o Itabaiana. Jogadores sem nenhum preparo físico, nomes que, a gente, crescendo, nunca viu nenhuma referência sobre a qualidade técnica, como se ouvia, com constância, referências elogiosas a Antonio Oliveira, por exemplo. Afora Dinda, o goleiro, que vi jogar, mas não me lembro de nenhuma pegada espetacular, quem ficou do Cantagalo?

Só Chico, na persistência de suas atas, na eleição de sua diretoria, eminentemente doméstica, na manutenção do campo do Cantagalo, ao lado do Estádio Etelvino Mendonça, nas suas viagens semanais a Aracaju de pasta na mão e guarda-chuva em outro, envelhecendo com o tempo, mas sem perder a educação e a fidalguia, a manter o Cantagalo vivo de qualquer forma, como um carro velho, de manivela, que teimasse em circular nos tempos de veículos de câmbio automático, Chico fazendo o papel do pai que vive em função exclusivamente do filho.

A pessoa, que disparou contra Chico do Cantagalo, na tarde do último dia 16, em sua residência, em Itabaiana, talvez não fizesse idéia, em sua perversidade e anormalidade psíquica, do valor moral, esportivo e histórico de Francisco Vilobaldo de Oliveira. Nem vai ter ocasião de avaliar a maldade que praticou, porque a polícia, ao persegui-lo, acabou com a sua vida. É como se o disparo do policial, que o atingiu, tivesse se transformado na pelota que, ao entrar na trave, assinala o gol, no último minuto, empatando ou desempatando a partida. É como se o Cantagalo tivesse feito um gol, como naqueles tempos, da década de cinquenta, gol que Chico, agonizando em um hospital, não viu.


[email protected]
Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]