teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Muito esperada era a primeira encíclica social de Bento XVI, onde o Papa exporia seu olhar sobre a realidade, a coisa social (resociali). Encerrando o Ano Paulino e citando a carta do apóstolo aos Romanos, quando exorta a comunidade de Roma a uma caridade verdadeira, que não seja uma farsa (Rom 12, 9-10), Bento XVI enfim entrega sua encíclica, na festa de São Pedro e São Paulo, a 29 de junho.

Os que esperavam um documento com agudas análises sociológicas seguramente estão defraudados. A preocupação do Papa teólogo é clarificar, dentro do conjunto da revelação cristã, o conceito de caridade. E o faz desde o início da encíclica, quando sublinha a origem divina e gratuita da caridade, amor que é – antes que ação transformadora e compromisso social – graça. Graça cuja origem é o amor trinitário, que o Pai revela pelo Filho, Verbo Encarnado, e experimentamos como Espírito derramado em nossos corações (nº 5).

Este e não outro, frisa a encíclica, é o amor que se encontra no centro da Doutrina Social da Igreja (DSI), e que só tem compromisso com a Verdade. E se a fé cristã professa e proclama que a Verdade se encontra em Jesus Cristo, há que assumir nos dois elementos fundamentais dessa doutrina – a justiça e o bem comum – a concepção que preside o Evangelho do mesmo Jesus: caridade que supõe e inclui a justiça, mas a supera na lógica da entrega e do perdão (nº 6); caridade que atua em favor do bem comum em qualitativa diferença ao bem meramente secular e político, preparando a felicidade definitiva pela qual o ser humano anseia (nº7).

A preocupação do Papa se explicita mais claramente nos nº 9 e 10, quando procura diferenciar o serviço de caridade que a Igreja pode e deve oferecer ao mundo globalizado de outras instituições. “O risco de nosso tempo é que a interdependência de fato entre os homens e os povos não encontre correspondência com a interação ética da consciência e o intelecto, da qual possa resultar um desenvolvimento realmente humano” (nº 9). A missão da Igreja na sociedade, segundo o Papa, não é oferecer soluções técnicas e políticas “strictu sensu”. Mas sim apresentar a verdade única a poder construir uma sociedade na medida da vocação e da dignidade do ser humano tal como o cristianismo a entende. (nº 10)

Em seguida, ao longo de todo o Cap. I, o texto comenta a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, a quem chama de “venerado predecessor” (nº 8) para, no capítulo II, descrever como entende o desenvolvimento humano em nosso tempo, quarenta anos depois. Permanece válida a proposta de Paulo VI, com os acréscimos que respondem às novas exigências que os novos tempos trazem. Tudo isso prepara aquilo que no Cap. III o pontífice dirá sobre a antropologia fundada sobre o dom e não sobre o mérito (nº 34).

A verdade e a caridade são dadas por Deus ao ser humano e precedem qualquer ato ou iniciativa sua. E é esse fundamento que permitirá orientar a globalização da humanidade em termos de relacionalidade, comunhão e participação gratuitas (nº 43), único antídoto contra a solidão, pobreza maior de todos os tempos (nº 53). O desenvolvimento verdadeiro, portanto, segundo a encíclica, consistirá na “inclusão relacional de todas as pessoas e todos os povos na única comunidade da família humana…em solidariedade sobre a base dos valores fundamentais da justiça e da paz.“ (nº 53).

Sob esta luz é que o Papa comenta, então, os grandes temas sociais de hoje, tais como migrações, meio ambiente, bioética, técnica, situando-os sob a definição de temas antropológicos (nº 75). A problemática social é, na verdade, antropológica, dirá a encíclica quando caminha para sua conclusão. E deve, portanto, não conceber o desenvolvimento apenas como problema material, mas também espiritual e moral (nº 77). O cristão é chamado a comprometer-se na transformação social sem deixar de lado a oração e a primazia de Deus sobre todas as coisas.

Parece ser intenção da nova encíclica reafirmar que a caridade iluminada pela verdade deve incluir necessariamente a dimensão transcendente e espiritual, para não se transformar em mais uma ideologia. E para isso parte do princípio de que a tarefa da transformação social antes de tudo é dom de Deus e não mero esforço humano. (nº 79)

Além de admitir que se trata de afirmação da maior importância, é de se desejar ardentemente que a nova encíclica de Bento XVI não sirva de pretexto para cair em uma visão alienada e espiritualista dos problemas sociais. Isto, a nosso ver, seria tão daninho à verdade como os perigos reais e sérios que o Papa aponta em seu belo e profundo texto.

Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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