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A dor foi tão grande que as folhas se ressentiram e despencaram das árvores. Os rios secaram, as flores murcharam, os pássaros interromperam seu vôo e seu canto, o sol se pôs mais cedo, a lua nem nasceu, a brisa soprou mais quente, o mar ficou amarelo, regatos inverteram seus cursos, choveu da terra para o céu, as pedras amoleceram, o mundo inteiro mudou. Doía na alma, no corpo, no pensamento, nas palavras. Circulava em minhas veias – era o meu sangue – escorreu pelo meu rosto – era minha alma – era minha dor.
Não pude contê-la. Como um cristal, ela me partiu. Multiplicou-me. Vi-me refletida em cada fração que brilhava nas gotas que o orvalho depositara sobre as folhas, nas bolhas de sabão que as crianças jogavam contra o vento, nos olhos sensíveis dos animais. Para onde eu me voltasse, lá estava meu rosto. Passei a integrar o mundo. A dor me dera uma identidade. Minhas múltiplas faces traçavam linhas sobre o universo. Ligavam-me como um imenso cordão umbilical, às dores do mundo. Para ir, eu teria que escolher. A escolha era difícil. Decidir era preciso. Em cada fragmento que brilhava, via-me com expressões diferentes. Foi então, que vi a mulher. Como uma sombra, furtiva caminhava sobre as folhas secas de outono. Quando tentei alcançá-la havia sumido.
Conversei com o homem e contei meus temores. Falei da estranha sensação de não ser só, de nunca estar só, como se houvesse uma cópia de mim em algum lugar. O cristal me dizia isto em todos os momentos. Sofrendo, em algum lugar eu existia além, a dor me dizia. O mundo possuía uma parte que eu não podia controlar.
Os reflexos do cristal delineavam os caminhos e, em todos eles, a sombra do medo. Para afastá-lo, cantei. Eu ainda podia cantar. Na modulação da minha voz ouvi respostas como se uma outra voz, num tom igual ao meu, completasse as notas me ajudando a pensar, a refletir. Do meio do mundo a voz me chamava.
A mulher tornou-se a passar sob minha janela. Vinha de algum lugar, havia sido chamada, eu sabia. Os passos cadenciados possuíam um som especial que se juntava à melodia que eu cantava. Percebi, então, que entre os cristais faltava uma das minhas faces. Sabia que as outras me pertenciam. Tentei salvá-las. À minha frente o fio de cristal apontava para um outro mundo.
Música e lamentos encheram os caminhos. Ressoaram nos troncos das velhas árvores, nas folhas recém-nascidas, nos bulbos verdes que brotavam no chão, na grama, no capim, nas flores do campo.
No riacho que acompanhava a estrada, vi meu rosto refletido. Corpo e alma estavam se transformando. Então, senti dor maior, a dor de ser livre, de possuir um mundo onde poderia encarar meu próprio destino. Criei asas, podia voar e voei. No vôo, a dor sumira. Dissera-me o cigano: “o melhor vinho é a liberdade”. Mas, como ele, também embriaga, eu estava embriagada de dor e de liberdade. Ela também dói porque nos entrega, além das nossas, as dores do mundo.
Voei para o trapézio onde me esperava o desafio. Não o desafio do céu, nem do espaço, o desafio do chão que me olhava sorrindo, esperando que eu caísse. Não caí. Numa só face, eu me reconheci.
Dominava a dor, ela era minha.
Cheguei ao limite do nada, onde tentei me equilibrar. Vi um mundo colorido que passou a me pertencer porque estava dentro dos meus olhos, e os olhos que me espiavam também me pertenciam porque eu estava dentro deles. No medo e no sorriso dos palhaços mandava minha liberdade e ela era eu. Alguém chamou a mulher corcunda que voltou a passar. Eu já não estava lá. Caminhava no fio de cristal desafiando a vida.
No picadeiro fui palhaço, entre o céu e a terra, trapezista, na corda bamba dançarina, a cada animal do circo me incorporei.
Usei as faces de cristal. Podia dominá-las. Tornei-me múltipla. Escolhi. Equilibrando a sombrinha colorida, parti levando minhas faces. A dor veio comigo. Saiu como se fora o meu suor. Espalhou-se pelos caminhos, maculou as águas do rio, misturou-se ao orvalho das plantas, tornou-se pesadas as asas da andorinha, incorporou-se aos ruídos do mundo, e, como o fio de cristal manteve-me presa à sua essência.
Sons de pandeiro e violinos, castanholas e bandolins, acompanhavam cantigas que não eu podia entender. Não pude continuar, Ali, acabou meu espaço.
Obs: Texto retirado do livro da autora – O Olho do Girassol –