OS APÓCRIFOS E O CICLO DA MÃE

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A festa de Santana tem sido comemorada com muita efusão em múltiplas celebrações, pois ela é considerada a padroeira dos professores e das avós.Em Cachoeira, onde estive nesse dia, havia até uma pequena charola que entrou no início da Missa, aclamada pela assembléia dos fiéis.

É interessante que nos Evangelhos não se fala na figura de Santana, nem do seu esposo Joaquim.A prevalência dos textos evangélicos tem uma centralidade na figura de Cristo. Maria é citada poucas vezes e José, com mínimas referências, simplesmente desaparece de cena. Na verdade, a figura dos avós de Jesus aparece nos Evangelhos chamados de “apócrifos”. Na linguagem do senso comum, o termo significa “falso”, “sem autenticidade divina”, “suspeito de heresia”, o que implica um tratamento e um direcionamento a esse tipo de texto. Mas na verdade, no sentido etimológico, apócrifo significa “oculto”, “secreto”.

Há autores que confirmam que os apócrifos tinham um certo trânsito livre nos dois primeiros séculos do cristianismo, quando ainda não estava definida a canonicidade dos Evangelhos oficiais. Um obstáculo a determinadas passagens deles , com relação a Cristo, seriam os exageros de alguns milagres (por exemplo: Cristo,quando criança, teria feito voar pássaros de barro ao brincar com os colegas ).

A tradição aponta o Concílio de Nicéia, 325, sob a égide de Constantino, como o momento em que se deu a separação entre os apócrifos e os evangelhos canônicos. De qualquer forma, são muitos os textos chamados de apócrifos: – O livro de Adão e Eva que narra o conflito com satã; – os Agrapha Extra-Evangelho, que são palavras de Cristo não conservados nos textos oficiais;- há também um Ciclo de Pilatos, com uma carta dele ao imperador romano sobre Cristo;- há outro sobre a Morte de Pilatos;- também uma Declaração de José de Arimatéia; -há um outro Ciclo intitulado de Cartas do Senhor, onde o rei Abgarro, de Edessa, escreve a Jesus e esse lhe responde.

Os apócrifos alcançaram um ápice na ocasião da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, entre 1945 e 1947, nas cavernas de Qumran e com os textos gnósticos de Nag Hammadi (Alto Egito). São famosos, entre esses achados, além de grande parte de textos desconhecidos da Bíblia em hebraico, os Evangelhos Segundo S. Tomé,O Evangelho da Verdade, O Apócrifo de João, o Livro Secreto de Tiago, o Apocalipse de Paulo, o de Pedro. Dentre os apócrifos, a série que fala na Dormição de Maria, que na tradição romano-latina é chamada de Assunção, ou Glória, dá a base para a crença que permeou toda a história do cristianismo de que Maria não morreu mas subiu ao céu em corpo e alma. Isso se tornou um dogma em 1950, mesmo que essa festa já fosse celebrada há séculos no cristianismo.

A devoção à Senhora Santana integra, sob o ponto de vista sócio-antropológico, o Ciclo da Mãe, à qual o Brasil tem tanta sensibilidade, pois as deusas-mães aqui chegaram através de Yemanjá. Ela é a “imago” materna e no seu rico simbolismo, na teologia afra, esse culto representa a Mãe d’Água. Sabe-se que o culto das águas tem uma difusão universal e acha-se estreitamente ligado ao complexo materno. Claro que essa “imago” materna torna-se mais evidente com o sincretismo católico onde Yemanjá se torna Nossa Senhora (sob diversos títulos: Nossa Senhora da Conceição, do Rosário, etc.).

O Museu Costa Pinto já realizou uma bela exposição com uma variedade de imagens de Santanas Mestras, grande parte vindas de Minas, onde se sublinhava a importância dessa Grande-Mãe no culto doméstico. Ao lado da religião oficial, da Capela, eram as mães, as avós, as tias, que reuniam a família, nos mais recônditos rincões, para a oração . Portanto, esse tio de culto, foi agregador e gerador de solidariedade da família patriarcal.

Gilberto Freyre, em Sobrados e Mocambos, fala da importância desses Cultos:”De maternalismo, se mostra, na verdade, impregnado quase todo brasileiro de formação patriarcal ou tutelar. Era como se no extremo amor à mãe ( à avó ), à madrinha, à mãe-preta, o menino, e o próprio adolescente, se refugiassem do temor excessivo ao pai, ao patriarca, ao velho – senhor às vezes sádico, de escravos, de mulheres e de meninos”.

Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do IGHB ,do Instituto Genealógico e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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