Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Com todo respeito ao sofrimento de quem estava doente há tanto tempo e morreu em deplorável situação de debilitamento físico, pesando 51 quilos e com vários ossos quebrados, Michael Jackson parece mais fictício do que real. A fantasia sempre imperou sobre a realidade na vida deste menino pobre, o sétimo dos nove filhos de uma obscura família de Gary, Indiana, cujo pai era testemunha de Jeová e dava aos filhos rígida educação.
O talento dos rebentos, que faziam música sem sua permissão, foi um dia descoberto pelo severo patriarca Joseph. Ele percebeu que ali estava o segredo que o tiraria da pobreza. Mudou-se, então, para a Califórnia, onde primeiramente o jovem Michael começou a cantar num conjunto com os outros irmãos, o famoso Jackson Five, até iniciar, em 1971, a carreira solo que o transformaria num astro pop.
A partir daí, a vida de Michael Jackson foi marcada por um constante paradoxo entre uma história de sucesso entremeada com escândalos, anomalias, dramas e tragédias. Acusações de abuso sexual, operações várias para corrigir problemas de uma saúde frágil, transformações faciais e corporais, misturavam-se com milhões e milhões de cópias de discos vendidos, fãs se descabelando e gritando seu nome, querendo tocá-lo, esperando de tocaia na porta dos hotéis onde se hospedava, imitando seu jeito de dançar, dando aos filhos seu nome.
Ao mesmo tempo em que fazia vultosas doações para entidades
filantrópicas, Michael Jackson vivia em litígio com a justiça por acusações de abuso sexual, pedofilia, evasão de divisas, sonegação de impostos. Impossível esquecer a imagem terrível do cantor em delírio absoluto, balançando o filho recém nascido para fora da janela do alto do hotel onde se encontrava hospedado em Berlim, em 2002. Provocou terror no mundo inteiro e as acusações de abuso sexual recrudesceram fortemente.
A morte do cantor, no último dia 25, ganhou as manchetes do mundo inteiro. Sua saúde física parecia decair no mesmo ritmo vertiginoso que a saúde mental. A estrela do astro pop, que brilhava há tantos anos, decaía e empalidecia, enquanto sua vida ia se esboroando, assim como suas finanças. Morreu endividado, destruído fisicamente pela dependência química, pela insanidade mental, de forma melancólica.
Acima de tudo, Michael Jackson passou pela vida com ar de faz de conta. Parecia não ser de verdade aquele superstar que à medida que ganhava mais visibilidade semeava a dúvida sobre se era homem ou mulher, negro ou branco, caritativo ou desonesto, pai amoroso ou pedófilo cruel. Nada nele parecia real. E sua morte comprova essa aura de ficção quando, ao mesmo tempo em que ganha as páginas dos jornais, é objeto de declarações sobre casamentos não consumados, seguros milionários forjados de última hora, filhos assumidos como seus mas de duvidosa paternidade.
E, no entanto, fãs do mundo inteiro declaram-lhe sua eterna saudade, desejam ser seus seguidores, dançam uma e outra vez o passo da lua, o célebre “moonwalk” que o imortalizou e sublinhava seu estilo light, juntamente com sua voz andrógina e inclassificável. Mais ainda: há informações de que o Rio de Janeiro erguerá uma estátua em sua homenagem no Morro Santa Marta, onde ele gravou um vídeo clipe em 1996.
Parece-me um tanto preocupante essa idolatria de um astro irreal, que não pisa no chão e dança lunaticamente. E propõe um modelo de humanidade que não possui consistência e carece de realidade. Por que nos repugna tanto voltar o olhar para os paradigmas reais, os heróis de verdade, que a cada dia arriscam a vida para salvar a de outros?
Que Michael Jackson descanse em paz. Certamente agora terá se defrontado com a verdade sobre si mesmo e sobre a vida. E que nós possamos descobrir modelos e paradigmas mais nobres e consistentes para inspirar nossa vida e nossa conduta. Para que não nos tornemos, nós também, seres de faz de conta.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
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