Eu acompanhava o enterro bem perto do caixão. As pessoas, que o conduziam, eram constantemente substituídas por outras, que se ofereciam, espontaneamente, para segurar uma das alças. Eu via e observava. Pela primeira vez, participava de um cortejo fora dos territórios de Itabaiana e de Aracaju, com a curiosidade aguçada, de maneira que estava de atalaia, à espera de um fato diferente, que ocorreria. Em Teresina, quando de minha passagem como juiz federal, tive a oportunidade de ir a um enterro. Em função do calor violento, o sepultamento se verificou no período noturno. Naquela ocasião, me chamou à atenção o fato de o caixão ser colocado em pé na sepultura, como faziam os indígenas, utilizando, evidentemente, um pote. Não tive a curiosidade de perguntar o motivo.

Agora, o sepultamento se verificava no povoado Saco, no município de Estância. Eu, a certa distância da urna funerária, estava atento a todos os movimentos, até que as seis pessoas, que a levavam, pararam em frente a cerca do terreno, onde, adiante, atrás de coqueiros, bem escondido, se situava o cemitério. Ouvi alguém que pegava em uma alça dianteira perguntar quem tinha saído da casa segurando o caixão. Foi fulano, ou foi sicrano, ou foi beltrano, alguns instantes de dúvidas, entre perguntas e respostas, até que o cidadão, que fez a pergunta, sentenciou que se entrasse no cemitério assim mesmo, com a turma que, naquele momento, segurava as alças.

Nunca tinha visto, antes, nos enterros que testemunhei, tal pergunta. Conhecia alguns detalhes, embora, também, não soubesse explicar o motivo. Um deles, por exemplo, na obrigatoriedade de ser o caixão fechado dez minutos antes de o sepultamento sair da casa do defunto. Ouvi a recomendação de um itabaianense da geração do meu pai. O momento não me permitiu lhe perguntar o significado. Mas, no povoado Saco, a observação feita por um dos condutores do caixão ficou martelando na minha mente. Fiquei, naturalmente, curioso, indo, depois, encontrar resposta em Câmara Cascudo, ao consultar o livro SUPERSTIÇÃO NO BRASIL (São Paulo, Global Editora, 2001, 496 pp.). Estava lá, entre o rol de imensos apontamentos sobre a morte, uma observação que se encaixava com a pergunta que ouvira no povoado Saco: “Move-se o cortejo fúnebre, o caixão levando o morto com os pés para diante, caminho da cova no cemitério. Aqueles que ajudam a carregar o féretro na saída da casa devem entrar no cemitério levando-o sob pena de morte próxima” (p. 23).

O costume, vindo dos tempos de gregos e romanos, atravessara o Oceano Atlântico, atracando no Povoado Saco, onde, pelo menos, até aquele sepultamento, estava bem presente. Impressionante a sua trajetória, vindo de tão longe, para, entre nós, séculos e séculos depois, se manter vivo. Mas, não era só este. Outros, que vi em Itabaiana, fui encontrar explicação em Câmara Cascudo, como jogar terra no caixão do morto, costume nascido na Grécia e adotado pelos romanos, que passaram para os portugueses, e, estes, trouxeram para o Brasil. Ainda a velha frase, que ouvi muito na minha infância, para caracterizar a pobreza de certas pessoas que se aventuravam em fazer algo acima de seus recursos: não tem onde cair morto. Estava lá em Câmara Cascudo, no sentido de que todos devem ter um túmulo, “a indispensável residência do cadáver, casa para a alma” (p. 25). Aqui, a frase aludida representava uma crítica. Mas, nos tempos coevos, a explicação ia além da crítica, para mostrar a necessidade de todas as pessoas serem sepultadas, a fim de que a alma do morto não ficasse penando de lugar em lugar. O velório, em Itabaiana, era chamado de sentinela. Em Aracaju, já adulto, estranhei o termo velório, porque meu pai, que, quando podia comparecer, não perdia um, só se referia à sentinela, termo que assimilei, inclusive de sentido mais histórico que o de velório, se encaixando melhor na sua origem. Câmara Cascudo, no caso, embora utilize a expressão velório, lhe dá o significado que melhor se enquadra em sentinela: “A guarda do morto é velha tradição oriental e começaria da fase pastoril onde o cadáver seria vigiado pelos da tribo para não ser roubado pelos inimigos” (p. 22).

Os costumes andam pelos séculos, calados, sem alarde, se preservando no meio do povo, entre os quais, um, em desuso hoje, nas camadas mais civilizadas, mas não no interior, onde se mantém ativo, como o luto, luto fechado, preto em toda a roupa para o homem e para a mulher, ou, no caso do homem, a fitinha preta no bolso da camisa, luto que vi, com muita freqüência, nos meus tempos de menino, os parentes mais chegados do morto não abrindo mão da roupa de cor preta, como minha mãe adotou, em 1972, quando vovó Lilia morreu. O luto podia ser só por uma semana, ou um mês, ou seis meses, ou um ano, não importando o calor do verão. O luto era uma forma de mostrar o sentimento pelo parente desaparecido, costume que, obviamente, não nasceu no Brasil, sendo para aqui trazido pelos colonos portugueses. Do fato não sabia um ex-vigário de Itabaiana, que, no final da década de oitenta, ao celebrar a missa de sétimo dia em sufrágio de uma morta, mãe de numerosa prole e avó de uma camada imensa de netos, ao ver toda a família, disciplinarmente portando o preto, não teve a menor cerimônia de, em pleno sermão, criticar todos pelo atraso, fato que me chegou ao conhecimento, fazendo-me perguntar se o atrasado era a família da falecida ou ele, sacerdote, porque os costumes não se fabricam nem se inventam, mas se herdam, através das gerações, de maneira a merecer de todos o respeito devido.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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