Djanira Silva 8 de junho de 2009


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Mesa posta para o jantar. No meio da mesa, a tigela de sopa, um cuscuz fumegante, a leiteira coberta com um pano muito branco, uma bandeja com o pão torrado, e ao lado, o queijo. Apenas duas pessoas à mesa. Duas angústias que se olha como se aquilo tudo fosse um campo de batalha ou o mapa de um mundo já percorrido.
Num dos lados, a mulher sentada numa cadeira de rodas com um manta a envolver-lhe as pernas. À sua frente uma comida diferenciada, insossa aguada e descolorida.
Doente, há algum tempo, permanecia naquela insípida dieta para prolongar uma vida sem sentido. Ou para evitar uma morte já anunciada? Ou para não dar trabalho aos outros?
No outro lado da mesa o marido, parecendo não tomar conhecimento de nada, mas na realidade um homem ainda lúcido, bem vivido – como quase todo homem – uma criatura que havia descarregado suas mazelas nos braços de outras mulheres, nas mesas de bar ou mesmo, na segurança de se saber homem, machão, aquele todo poderoso em quem “nada pega.”
Os filhos que tiveram, aumentaram os trabalhos dela. Ele sempre ficara na dele.
Bem mais nova que o marido ali se encontrava com o olhar perdido talvez fazendo uma coisa que se diz não se poder fazer: pensando em nada e o seu pensar em nada era um sofrer constante.
No meio da mesa a comida esfriava. Continuavam servindo como se os filhos ali ainda estivessem. A mãe sempre fora uma pessoa muito só. Sua solidão, na realidade, não era de presenças, era, como toda solidão que se presa, uma solidão de respostas, de entendimentos de afeto e de encontros. Mas, nunca tivera nada disso e agora pouco importava que tivesse ou não. Acostumara-se, desde menina, a fazer tudo por obrigação. Já com os irmãos não era assim. Eram considerados trabalhadores, espertos, sabiam entrar e sair, como dizia sua mãe. Eram vivos e resolviam tudo, sabiam tudo, acertavam em tudo. As mulheres, não, tinham obrigação de cuidar da casa, de fazer a feira, de preparar o almoço de servir o bicho homem que reinava naquela selva. E eles, nem sempre estavam trabalhando. Ficavam pelas esquinas batendo papo, ou nas bodegas tomando um traguinho, ou, quando não, nas pensões de “mulheres da vida” fazendo uma fezinha no jogo ou jogando um “vale tudo” num valoroso corpo-a-corpo.
Obrigação! Palavra pesada e cruel. Era obrigação “servir” ao marido, passar noites acordada ouvindo apenas choro de menino. Era obrigação ensinar-lhes o bê-a-bá, mesmo sabendo ler tão pouco, que às vezes nem sabia se estava ensinando certo ou errado. Era obrigação lavar roupa de todos em casa, enfim, era um nunca acabar de obrigações. E para com ela, quem tinha alguma? E precisava? Aquela mulher era forte como um touro, não chorava nunca, não se rebelava nunca, agüentava tudo. O que alguém poderia fazer por ela? Ficava-lhe apenas a consciência das suas obrigações. Havia sido assim com sua avó, com sua mãe e seria assim também com suas filhas. E as netas? Talvez o mundo mudasse um pouco. Quem sabe? Pelo que ouvira falar parece que as coisas estavam mudando. Mas, pelo pouco que podia entender, as mulheres estavam mais era se abestalhando. Trabalhavam fora e dentro de casa. Haviam dobrado seus afazeres. E o homem? Continuava o mesmo. As mesmas ocupações.
Nos raros momentos de lucidez a mulher pensava e pensava sempre as mesmas coisas, suas queixas eram como uma gravação que lhe ficara como um estigma. Não conseguia esquecer as injustiças da vida. Em dado momento um ligeiro sorriso apareceu em seu rosto como a zombar, naquela face mutilada pelo tempo e pelas criaturas. E se começasse tudo de novo?
Quando a enfermeira voltou para colocá-la na cama, o sorriso ainda continuava lá. A mulher, não.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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