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Certa vez, um camponês estava levando um saco cheio de grãos de trigo para casa. No caminho encontrou um mendigo que, estendendo sua mão disse: “Você poderia me dar um pouco de trigo?”. O sitiante, com muita má vontade, apanhou quatro ou cinco minúsculos grãos e os entregou ao homem. O mendigo transformou os grãos de trigo em ouro, devolveu-os ao camponês e imediatamente desapareceu. O sitiante ficou, então, com muita raiva por não ter entregue ao misterioso homem todo o saco de trigo.

Desde que o homem, na Antiguidade, deixou de viver em um modo de produção comunitário, passou a pertencer à nossa estrutura econômica, à organização social e também à nossa mentalidade a chamada “propriedade privada”. Apesar das diversas tentativas de eliminar esta instituição, como no caso das propostas anarquistas e socialistas, os seres humanos, em sua grande maioria, parecem não conseguir viver simplesmente com a possibilidade do uso das coisas. Tornou-se para nós praticamente óbvio a necessidade de nos apropriar dos mais variados bens: terrenos, casas, negócios, animais, etc. Este poder de apropriar-se do mundo chegou por muitas vezes a se manifestar de forma extremada, como no caso da escravidão através da qual o próprio ser humano tornou-se objeto não somente de uso, mas também de apropriação. Para a tradição judaica o direito de propriedade sempre foi reconhecido como legítimo, basta recordarmos o sétimo e o décimo Mandamento da Lei de Moisés. O roubo e o cobiçar a propriedade dos outros são atitudes condenáveis pela lei divina. No Novo Testamento, porém, a propriedade deixa de ser um assunto central. Até mesmo tomando uma direção contrária, os Evangelhos advertem de que o apego aos bens materiais criaria obstáculos ao Reino de Deus. Porém, este aconselhamento não diz respeito diretamente à ordem social, mas sim à caminhada individual, à postura interior de cada pessoa. Na escola do evangelista Lucas, esta advertência influencia, porém, na estrutura da vida comunitária. No Atos dos Apóstolos, a comunidade de Jerusalém vivia (ou pelo menos deveria viver) em um comunismo primitivo, onde os bens fossem socializados. Somente na Idade Média, encontramos o debate sobre a legitimidade da propriedade privada. Em sua “Summa Theologiae”, Tomás de Aquino diferencia o simples uso das coisas e sua apropriação. O uso e administração das coisas do mundo é um direito legítimo e divino de todo o ser humano. Porém, em seu uso, a coisa deve ser tratada sempre como algo comum, ou seja, objetivando um beneficio a um maior número de pessoas. Ao fazer uso das coisas deste mundo, o ser humano não pode esquecer de sua função social, da responsabilidade do usuário diante de seus semelhantes, pois a todos foi dado o direito de usufruir deste universo no qual vivemos. No que se refere à propriedade privada, Tomás de Aquino afirma que esta não é uma ordem divina, mas uma simples criação humana. De acordo com sua natureza racional, o ser humano pode se apropriar deste mundo para o desenvolvimento da vida. Deste direito surge também o direito à propriedade privada. Para o teólogo existem, inclusive, ótimos argumentos racionais para a propriedade dos homens sobre as coisas do mundo. O argumento da responsabilidade individual, ou seja, o homem tende a ter maiores cuidados diante daquilo que lhe pertence do que diante de algo público. Em qualquer país do mundo, seja desenvolvido economicamente ou não, os sanitários públicos sempre são uma péssima opção de uso. Outro argumento é o da competência social: a sociedade como um todo se desenvolve melhor se cada ser humano administrar coisas que são de sua competência ou capacidade. Por fim, Tomás de Aquino, defende a propriedade privada com o argumento da paz social. Esta é mais facilmente alcançada quando cada um usufrui do que lhe é próprio. Para o teólogo, porém, estes argumentos em favor da propriedade privada são simplesmente pragmáticos e não argumentos naturais ou divinos. Além disso, a propriedade privada só tem sentido a partir do momento que seu uso cumpre uma função social. “Pertence aquele que tem fome o pão que tu guardas; (…) ao pobre o dinheiro que tu tens guardado. Assim tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar” (São Basílio). Esta responsabilidade frente ao social é reforçada pela Encíclica Social “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII. Esta defende a propriedade privada alertando que todo o trabalhador, através de seu salário, objetiva a apropriação de coisas. Como também a eliminação da propriedade privada colocaria o cidadão em um total controle do Estado. Porém, toda a propriedade privada deve contribuir para o desenvolvimento da sociedade em seu todo. Caso contrário, propriedades privadas tornam-se, infelizmente, verdadeiras trincheiras. Afinal, quando não existe o bem estar social, “o supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres” (Santo Agostinho).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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