Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.(*)

Na maioria das vezes, a única coisa que lhes resta é a demanda por um cadáver. Esse que hoje é um cadáver um dia esteve em seu ventre. Ela lhe deu à luz, alimentou-o, ensinou-o a andar e a falar. Carregou-o nos braços por longas noites insones, cuidando de sua febre, de sua gripe, de sua dor e de sua reação de vacina. Hoje ela quer carregá-lo nos braços outra vez. A última. Antes de devolvê-lo à terra e à eternidade onde agora somente viverá. Não mais em seus braços. Não mais próximo ao seu corpo.

É assim que muitas – inúmeras – mães brasileiras passarão o dia das mães. Chorando a dor de uma ausência impreenchível e sofrendo a reduplicação dessa ausência na impossibilidade de tocar, beijar, acarinhar o corpo morto que um dia saiu vivo de seu ventre, correu alegre pelas ruas e praças, cresceu, virou homem e lhe encheu o coração e a vida de alegria e esperanças.

Sem tragédias ou dramas excessivos: ser mãe no Brasil de hoje está se tornando algo muito, muito perigoso. É acordar de manhã e não saber se o percurso do filho pequeno até a escola não será interrompido brutalmente por algum assalto que ameaçará ou apagará sua vida. É viver o dia em sobressalto cada vez que o telefone toca, temendo notícias de seu filho que anda pelas ruas assassinas em que está transformada boa parte das capitais e grandes cidades brasileiras. É deitar-se à noite e não conseguir conciliar o sono, porque o filho que saiu não se sabe onde está, ainda não chegou e o coração cavalga de medo que não chegue.

E é também – e talvez mais cruelmente ainda – ter a notícia de que o filho morreu, constatar seu desaparecimento e não poder enterrar dignamente seu corpo. Nada mais doloroso para uma mãe do que não poder celebrar esse ritual triste, mas nobre: dar sepultura digna ao filho que concebeu, deu à luz e alimentou. Ver negado esse direito mais fundamental, que através da historia da humanidade celebrizou e tornou paradigmas mulheres como Antígona e outras. Sepultar o ser amado, poder chorá-lo com dignidade e tristeza profunda. Ter negado esse direito é dor somada à dor onde parece que não há mais espaço para dores novas e irremissíveis.

Quem viu o impressionante filme “Tropa de elite” lembra-se do momento da “conversão” do policial do BOP, magnificamente interpretado por Wagner Moura. Ela se dá justamente no momento em que uma senhora oprimida pela dor lhe pede ao menos o direito de enterrar o filho. Ali sua integração interior começa a desfazer-se e fragmentar-se. E o policial, antes tão seguro, tão severo, que só falava aos gritos, que deixava a mulher parir sozinha porque ele estava cuidando de metralhar alguma favela, começa a não dormir à noite, a ter enjôos, vômitos e todos os sintomas do estresse causado por um remorso, uma perplexidade que não o deixam sossegar. Aquela mulher, com sua dor inconsolável e sua determinação firme como só as mães costumam ter, abrira uma brecha em sua autoestima inexpugnável.

Neste Dia das Mães é bom alegrar-se e celebrar. A maternidade é uma das maiores graças. O próprio Deus, ao encarnar-se em Jesus de Nazaré, não abriu mão dessa experiência única que é nascer do ventre de uma mulher. O maior dos homens, o mais poderoso, já coube todinho, inteirinho, no corpo de uma mulher. Por isso é bom fazer festa, ganhar presentes, beijos, abraços, rir, dar graças.

Mas seria importante não esquecer que enquanto as mães brasileiras estiverem sob esta contínua e terrível ameaça de ver os frutos de seu ventre exterminados em uma guerra ridícula e sem fim, da qual ninguém está livre, são todas as mães que estão sob ameaça. E se nos dessolidarizamos e dizemos que graças a Deus não aconteceu conosco, pior ainda.

Não são só os meninos do tráfico que estão morrendo vítimas da violência. São os rapazes da classe média que, sem resistir a assaltos, são metralhados sem piedade. São crianças pequenas no bebe conforto, jovens de ambos os sexos indo para o colégio e a universidade que têm sua trajetória de vida interrompida por uma bala perdida.

Se não fazemos da luta das Pietás e das dolorosas brasileiras a nossa luta, corremos o risco de o Dia das Mães tornar-se mais uma celebração fúnebre que um dia de festa e alegria.

Feliz Dia das Mães para todas.

(*) Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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