Marcelo Barros 23 de junho de 2009

Nestes dias, a cultura popular brasileira é tomada pela memória do nascimento de São João Batista. Muitos cânticos tradicionais recordam o que conta o início do evangelho de Lucas. Trata-se de uma linguagem narrativa, como os mestres judeus costumavam comentar passagens bíblicas do primeiro testamento. Os grupos de novena e de folia sabem que o importante destas tradições é a proclamação de que começou um tempo novo. O útero da mulher estéril (Isabel) tornou-se fértil e o pai mudo começou a profetizar. São sinais de uma transformação que, durante toda a sua vida, João Batista, como profeta, anunciou e pelo qual trabalhou.

Conforme a espiritualidade cristã, João Batista é uma figura paradigmática de todos os tempos e não apenas um santo que viveu há mais de dois mil anos. Como os profetas de todos os tempos, ele nos recorda que o deserto pode ser fértil e, como dizem profetas populares de movimentos messiânicos brasileiros, “o mar vai virar sertão”.

Hoje, a sociedade tende a nos tornar meros consumidores de um mundo banalizado como imenso centro comercial. E a natureza sofre as conseqüências de ser tratada como mercadoria. Neste contexto, a figura do profeta toma outro contorno. Ao ressaltar no deserto o rio Jordão e o batismo como mergulho em uma vida nova, nos chama a valorizar a água como sinal de vida e a descobrir, mesmo na aridez, oásis de fertilidade e caminhos de vida nova e sadia. João Batista nos ajuda a descobrir que, em meio a todas as dificuldades e como profetas no deserto, podemos ser pessoas mergulhadas no divino (é isso que quer dizer batizadas) e testemunhas da ação divina de transformação do mundo.

Há quem se espante que tanto João como Jesus de Nazaré reuniram mais pessoas consideradas socialmente pecadoras do que os religiosos de sua época que, aliás, não os aceitaram. Existe um tipo de espiritualidade que põe as pessoas em uma espécie de elite sagrada, a se impor uma série de ideais e metas que as pessoas tentam alcançar através de exercícios espirituais e orações. Este tipo de espiritualidade tem seu valor porque aponta um alto objetivo que as pessoas devem alcançar. O risco é que muita gente não enfrenta o negativo presente em suas vidas. Então, o edifício espiritual fica construído como se fosse uma casa sem alicerce. A qualquer momento, aquilo que é negado, mas nem por isso deixa de existir, assoma e toma conta da casa. Faz parte essencial da espiritualidade, nos lembra João Batista, assumir nossas negatividades e trabalhá-las, nos descobrindo frágeis e divididos, mas objetos prediletos do carinho divino. Um monge antigo do Oriente dizia que o céu, mas também o inferno estão dentro de nós mesmos.

A espiritualidade da Bíblia não idealiza profetas nem se concentra em ideais e metas muito altas. Assume as ambigüidades de Abraão, capaz de, para escapar com vida, entregar a própria mulher a um rei estrangeiro como concubina. Não nega a esperteza mentirosa de Jacó para roubar do irmão Esaú o direito à primogenitura. Não disfarça que Moisés, ao encontrar com Deus no Horeb, estava fugido, porque tinha assassinado um egípcio. Não idealiza Davi que, por gostar de mulheres, é capaz de mandar matar um auxiliar que lhe servia. Não desconhece a inconstância de Salomão e assim por diante. Nos evangelhos, Jesus lida com a impetuosidade de Pedro, com a ambição de poder dos discípulos e a enorme fragilidade da adesão dos amigos. Corrige o que precisa ser corrigido, mas não nega a realidade e sim parte dela para caminhar. É isso que faz João ao batizar o povo e dizer “No meio de vós, (em vós), está Alguém que não conheceis”. É quando Jesus mergulha nas águas do rio Jordão, carregadas dos pecados de todo o povo batizado por João, que o Espírito Divino desce sobre ele e o Pai manifesta o seu imenso bem querer por Jesus e pela humanidade, chamada a escutá-lo e acolhê-lo como testemunha do amor e mestre de vida.

Corremos o risco de transformar o mundo inteiro em deserto e precisamos ser instrumentos da profecia que anuncia a transformação dos desertos em jardins floridos. Mas, o deserto geográfico nos mostra que temos também um deserto interior, um espaço de solidão e silêncio no qual precisamos entrar para nos encontrar e para reconhecer a realidade interior a partir da qual podemos acolher o divino e ser transformados por ele. Carl Jung dizia que somos apenas o estábulo, no qual Deus se digna nascer. Mas, isso é muito e precisa ser descoberto e valorizado.

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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