À míngua do que se ver, a chuva era um espetáculo que enchia os meus olhos de menino, na Itabaiana da década de cinquenta. Não era só o meu, era o de todos, porque a cidade inteira se unia, por exemplo, depois de uma grande chuva, todos de pés descalços nas calçadas, a comentar as goteiras que surgiam nos telhados, a reação de cada um, vendo, com curiosidade, a água, que, na rua, corria em grande volume e velocidade do alto para baixo, o Tanque do Povo, de repente, cheio, e sem suportar as águas recebidas, sangrando, cena que fazia com que muitos para lá se locomovessem, como estavam, de roupa molhada, a fim de presenciar o fato raro e anual, enchente que virava notícia nos quatros cantos da cidade.

Dentro de casa, a água, de essência fundamental, era recolhida para as cisternas ou para os potes. Na casa de vovó Brasília, eram vários potes, três ou quatro, num espaço, descoberto, entre uma sala e outra, potes com pano a cobrir a boca, para não entrar insetos, nem sujeiras. Lá em casa era uma cisterna, que recebia água de parte do telhado, através de bicas que, no momento mais crítico das grandes chuvas, não comportavam tanta água. A cisterna enchia e sangrava, a gente aproveitando o ensejo para um banho diferente, se abaixando para receber no peito ou nas costas a água fria que a cisterna deixava escapar, todos felizes a ponto de ninguém pensar em uma gripe, que, aliás, naquelas ocasiões, de intimidade dos pés no chão molhado, nunca deu as caras.

Um dia desse, lendo algum romance, me deparei com o verbo sangrar, utilizado para designar a água que escorria de um açude depois que este ficava com o seu volume máximo. Não pude deixar de me lembrar da cisterna lá de casa, completamente cheia, deixando a água escapar pelo suspiro. Suspiro, não, sangradouro, de cimento, na forma de uma telha. O verbo me pegou de jeito, bem no fundo do coração, naqueles momentos de chuva que deixava a gente mais menino ainda, sobretudo porque havia anos e anos que não ouvia ninguém a pronunciá-lo. Cisterna sangrando, há de perguntar algum curioso. O uso, no romance que li, tirava a exclusividade do verbo pronunciado em a Itabaiana da década de cinquenta.

E o Ginásio Estadual de Itabaiana, bem aprumado, lá no alto (a gente, na época, assim achava), enquanto a água escorria em direção a entrada, ainda não calçada, como hoje, fazendo uma lagoa no lugar do portão, obrigando alunos e professores a uma dança de pulos, como se fôssemos sapos, para não molhar sapato e meia? Em uma turma da primeira série, nos idos de 1962, a chuva, no inverno, foi tanta, que a pintura da parede sofreu alterações, a ponto de permitir que a estudantada nela anotasse as fórmulas das questões que a professora de Matemática ia perguntar, valendo ponto. A mestra indagava e o aluno, olhando para a parede, atrás da professora, respondia. Todos iam tirando nota dez, até que um aluno, ao não ver a fórmula de sua questão, pediu que a mestra se afastasse para ele ver melhor. Deve ter dito: dá licença, professora. Santa inocência! A professora olhou para a parede e retirou, um por um, todos os dez dados até então. Culpa dos alunos? Não. Mérito da chuva, batendo forte no oitão da parede, a permitir que os alunos escrevessem as respostas devidas.

Saudades das chuvas da sua infância, também acomete a historiadora Maria Thétis Nunes, oriunda, como eu, de Itabaiana, como testemunhei sua confissão, em uma palestra, talvez proferida no auditório da Biblioteca Pública Epifânio Dorea, há alguns anos atrás, porque, de fato, a chuva, entre nós, itabaianenses, tinha uma conotação diferente, especificamente nos momentos que antecedia a água encanada. Em Teresina, o juiz federal Hércules Quasímodo da Mota Dias, numa noite de chuva, me telefonou, alegre, só para comunicar que armara a rede na varanda da casa a fim de presenciar o espetáculo da água a cair. Mas, lá, a questão era outra, se prendendo a raridade da presença da chuva nas terras do Piauí, ao tempo de sua passagem por aquelas bandas.

Em Aracaju, já estudante do Colégio Estadual de Sergipe, me espantei com a abrangência da chuva. Demorei a entender o fenômeno. Explico: em Itabaiana, a chuva, quando caía, abarcava todo o pequeno centro urbano. Não era só em uma rua ou em outra. Era em todo o centro que nós percorríamos. Se estivesse chovendo na Rua do Sol, estaria também na Praça da Santa Cruz. Já em Aracaju, muitas vezes maior, a paisagem me deixava de boca aberta. Na Rua de Maruim, tudo estiado, a gente vendo, de longe, na Rua de Pacatuba, a chuva cair forte. Na Praça Gracho Cardoso, céu azul, sol brilhando, estiado, tudo no mesmo instante, paisagem tão dissimilar da que vi na infância inteira, sem conseguir, nos primeiros anos, obter uma explicação razoável, a cabeça indignada com a situação diferente da vivida anteriormente.

Uma vez, servidor da Justiça Federal, na década de setenta do século passado, saía do 6o. andar do Edifício Estado de Sergipe, em direção à Rua de Maruim, onde me aninhava. Água intensa nas ruas, em todo o itinerário. Evitava um trecho, porque a água subia pela calçada, evitava outro, o retorno se tornando mais longo, até que cansei de tanto desvio de rota, e, formalmente, como se entra num templo sagrado, larguei os sapatos nas calçadas molhadas da Praça Olimpio Campos, o calçado ficando pesado da água que trazia, eu queria era chegar em casa, mesmo que fosse molhado, como terminei chegando.

Chuva, da pesada, peguei da ponte da Candeia até em casa, em Itabaiana, em um final de tarde e começo da noite, em pleno inverno, a escuridão maior ainda, quando, ao lado de um vizinho, fazíamos companhia a meu cunhado, fiscal do Banco do Brasil, à época. O jipe achou de quebrar logo depois da velha e perigosa ponte de madeira sobre o rio Jacaracica. Liga-se o motor, pisa aqui, pisa ali, aperta o acelerador, nada, absolutamente nada, nenhum sinal de vida. Solução: voltar a Itabaiana na perna, no meio de uma chuva imensa, os pés na lama, como fizemos, quase sem ver nada, a água vindo de frente, pingos fortes, os três na estrada, sem que nenhum carro passasse naquele momento. Mas, o fato é inusitado para tirar o bom humor dos que faziam o percurso de volta, com o calçado na mão.

O morar em apartamento me tirou, em parte, a poesia da chuva caindo no telhado, na sinfonia que cada pingo, ao se chocar com a telha, provoca, no acordar, a qualquer instante da noite, com o aviso que o barulho fazia, algum chuvisco escapando para cair na cama, a gente procurando proteção no lençol, o olhar perdido na escuridão do quarto, até que o sono retornava, para, de manhã cedo, ver o tempo alterado, o céu sem nuvens, o azul escondido, o sol sem dar as caras. Tempos bons. Ainda hoje, quando chove no domingo pela manhã, uma certa nostalgia me sacode o coração e o pensamento voa para bem longe, para um domingo qualquer, de chuva, em Itabaiana.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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